"Se você cair daí e partir uma perna, fico arruinado". Eu andava pelo telhado da vivenda confortável, numa tarde Outono, à cata de ninhos de esquilos e guaxinins.
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Quem me dizia isto, nos anos 80, era um médico anestesista do afluente vilarejo de Media, na Pensilvânia, a uns vinte minutos de comboio de Filadélfia, a cidade do amor fraternal.
O nosso anfitrião não era pobre. Vivia folgadamente, mas sabia que o seu plano de saúde era insuficiente para três pessoas. Sabia mais que os nossos seguros, modelados para jovens residentes estrangeiros, estavam cheios de vazios legais, os famosos "loopholes", ou "donut holes".
Muitas apólices, por exemplo, não cobriam cuidados preventivos, incluindo rastreios, controlo da diabetes, mamografias e até vacinas anti-gripais. Outras possuíam uma cláusula misteriosa, sempre rubricada em letras microscópicas, dizendo que se excluía da protecção uma série de "despesas extraordinárias". Havia ainda severas restrições para quem sofresse de "patologias pré-existentes", e enormes discriminações em função do sexo e da idade, mesmo em indivíduos sem história clínica.
Por outro lado, os planos de seguro excluem, tipicamente, horas de assistência superiores a um limite dado, seja em internamento ou consultas. E há o problema da dramática subida dos custos: cresceram mais de 80% em 6 anos, crescem anualmente 3 ou 4 vezes mais do que os salários, e são responsáveis por mais do que metade das declarações de falência, individuais ou colectivas. O que aconteceu com os empréstimos para habitação, que deixaram de ser pagos por famílias em apuros, sucede em grande medida nos planos de saúde.
Como em todas as grandes máquinas burocráticas, grande parte dos custos referem-se não a trabalho médico, ou salários. 25% das despesas justificam-se com "processamento" e administração. Há ainda muito desperdício, abuso e fraude.
Por outro lado, existe uma falta gritante de universalidade. Mais de 45 milhões de americanos, ou cerca de 18% da população, não tem qualquer cobertura médica estatuída. Muitos destes não protegidos são trabalhadores, e incluem-se aí também numerosas crianças.
Para coroar o mal, temos o problema dos maus cuidados de saúde. Cerca de 100 mil americanos morrem anualmente devido às más práticas médicas, e muitos clínicos e hospitais são, regularmente, acusados de "medicina defensiva".
Se todos os mal cobertos, ou insuficientemente protegidos, ou já não contemplados, ou sem plano algum, tivessem problemas graves ao mesmo tempo, estaríamos perante uma catástrofe nacional nos EUA, com óbvias consequências planetárias.
Como é que chegámos aqui? Não há uma causa única, nem só razões materiais, económicas ou financeiras. Houve claras linhas filosóficas e doutrinais, advogando que o cuidado médico é um bem acessível em função dos rendimentos, como qualquer outro. Nesse sentido, se "quem não trabalha não come" (ou melhor, não devia), "quem não ganha o suficiente não tem assistência médica". As tentativas estatais de intervir nem sempre foram bem sucedidas, devido aos obstáculos das legislações estaduais e locais.
Realce-se também a monopolização: duas grandes sociedades de seguros controlam cerca de 35% do mercado, e muitas empresas sem intuito comercial foram adquiridas por companhias de lucro.
Obama, o reformador, quer transformar esta Babel. Merece, pelo menos, crédito.
Como veremos.