AceIto pagar para que quem precisa possa aceder a um hospital privado, se o público não resolve o problema. Mas não aceito que a minha contribuição ajude a destruir o Estado Social.
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Uma em cada duas consultas médicas feitas em Portugal é assegurada pelo sector privado. Um em cada quatro internamentos é feito em unidades privadas de Saúde. Cinco em cada 100 portugueses já trocaram as urgências dos hospitais públicos pelas urgências dos privados. Por junto, as unidades particulares de Saúde dispõem de cinco mil camas. Este ano, o volume de negócios resultante da resposta da oferta à crescente procura atingirá os mil milhões de euros. Por que razão são importantes estes números ontem divulgados pelo "Diário Económico"? Porque são o retrato fiel de uma nova realidade que nos interpela a todos enquanto consumidores de saúde e pagadores de impostos.
Primeiro truísmo: o Estado já não consegue garantir, com o mínimo de eficiência e qualidade, a prestação de uma das mais nobres e tradicionais funções que lhe cabem, ou cabiam: a prestação de cuidados de saúde aos cidadãos. O Serviço Nacional de Saúde estouraria, caso não houvesse hoje outra oferta no sistema. Tão simples quanto isso...
Segundo truísmo: os privados perceberam isso e, muito naturalmente, aumentaram, em quantidade e qualidade, a oferta. Não apenas para quem pode pagar o serviço do seu bolso, mas também para quem, não tendo resposta atempada no público nem dinheiro para aceder aos melhores serviços, precisa da ajuda do Estado. Muita da produção privada é, por isso, financiada pelo sector público. E, parece-me, será cada vez mais.
Estas duas realidades levantam problemas. Um deles pode muito bem ser ilustrado pelo que aconteceu às pessoas que estão à beira de cegar, após ter recorrido ao serviço de uma clínica privada. Uma vez que o Estado gasta parte dos impostos que arrecada a pagar aos privados pelo que não consegue fazer no público, o selo de qualidade dos serviços prestados tem de ser imaculado.
Aceito pagar para que todos possamos ter acesso a um hospital privado, quando tal for necessário. Mas, por isso mesmo, não aceito que a minha contribuição ajude a destruir o Estado Social. Isto é: numa área tão delicada como esta, é ao Estado, e não aos privados que legitimamente buscam o lucro, que devemos pedir contas.
Que contas? As contas que resultam do facto de o Estado ser o único poder que depende da vontade do cidadão-contribuinte. Se o Estado acha - e, a meu ver, bem - que o sector privado é fundamental para garantir cuidados de saúde a todos, então é ao Estado que cumpre regular e regulamentar as relações com os privados. Para não nos venderem, a preços por vezes proibitivos, gato por lebre.