A diplomacia americana é conhecida por algumas notáveis virtudes, mas entre elas não se conta, por certo, a subtileza. Quando os EUA decidem ir a jogo, costumam fazê-lo de forma determinada, como um bisonte que baixa a cabeçorra e carrega por ali adiante. Se pelo caminho estiverem porcelanas, pois...paciência!
Corpo do artigo
Vem isto a propósito da divulgação pública de uma conversa telefónica privada entre o embaixador americano na Ucrânia e a sub-secretária de Estado dos EUA para os Assuntos Europeus, Victoria Nuland.
A referida conversa, onde se falava da Ucrânia, foi lançada no Youtube pelos russos, que a esta hora devem estar bem divertidos a observar as ondas de choque que causaram. Não faço ideia sobre como foi possível registá-la, embora me pareça que, com o seu sistema de escutas em que espiam tudo e todos, os americanos terão esquecido que as suas próprias conversas podem ser apetitosas para outros. Como agora se comprova.
Na gravação, a posição norte-americana sobre a Ucrânia surge-nos com toda a crueza. Ali, por exemplo, se discutem possíveis sucessores ao poder actual (Vitaly Klitschko, Arseniy Yatseniuk ou Oleh Tyahnybok), ali se arredam uns para se elogiarem outros. De tudo, no entanto, fixou-se quase só uma coisa. A dado passo, os "nossos" dois interlocutores discutem qual o peso que acham dever ser conferido às Nações Unidas e à UE na resolução do grave impasse político da Ucrânia. Ficamos então a saber, pela boca da senhora sub-secretária de Estado, que as Nações Unidas podem ser importantes.
E a UE? Como rematou a senhora, a UE "que se f..a".
O vernáculo é tanto mais divertido quanto a senhora Nuland é a responsável americana dos assuntos europeus: é assim mais ou menos como se um apaixonado por bifes do lombo mal passados tivesse como encargo os problemas dos vegetarianos.
As reacções, como era expectável, foram quase todas tontas. Os Estados Unidos disseram que recusam reconhecer a autenticidade da gravação, mas a porta-voz do Departamento de Estado, Jan Psaki, declarou da mesma sorte que "eu não disse que era falsa". Pior ainda, numa atitude irritante pelo politicamente correcto, os EUA deram a conhecer que a sua vice-secretária de Estado "lamenta" o comentário (como se houvesse que "lamentar" o que se diz numa conversa privada).
Do lado europeu, ninguém vai ao que realmente interessa: isto é, que os Estados Unidos não ligam rigorosamente nada à UE. Van Rompuy, Presidente do Conselho Europeu, encheu-se de brios e considerou "inaceitável" o famoso "que se f..a". A chanceler alemã, que nunca poderia ficar atrás, considerou as declarações "absolutamente inaceitáveis". Uns valentes...
Como se viu no episódio das escutas globais da NSA, os europeus estão a ganhar o mau hábito de fazer cara feia e ficarem-se, depois, pelo pífio "inaceitável". Talvez não fosse pior perguntarem-se sobre as razões para a falta de respeito que, pelo que se vê, merecem da parte do seu principal parceiro. Porque os Estados Unidos, é verdade, são pouco dados a delicadezas. Mas costumam enganar-se pouco nas relações de poder.
Não se me peça, a concluir, que diga o que quer que seja sobre o "que se f..a". No Porto, como se sabe, quase nem é palavrão. Quase.
