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"Foi uma das matérias difíceis de conversar com a troika, porque a sensibilidade deles para estas questões não é tanta quanto a nossa". Dita por Assunção Cristas, numa entrevista ao "Público", a propósito da actualização das rendas dos inquilinos com baixos rendimentos, esta frase arrepia. É certo que somos useiros em antecipar problemas onde eles, porventura, nunca existirão. Esse medo paralisa-nos. Levámo-lo ao paroxismo: as coisas estão mal, mas somos contra a mudança por anteciparmos que só podem piorar. Em larga medida, estamos como estamos por esta resistência à mudança. A degradação da parte histórica das nossas principais cidades é um chaguento atestado de até onde essa inércia, no domínio do arrendamento, nos levou.
A frase não arrepia, sequer, por reflectir o legítimo rigor de quem impediu que caíssemos ao poço que tínhamos andado a cavar. Fomos nós, quase em exclusivo, que nos colocámos nesta situação. Há um preço a pagar que passa por ajustar os nossos gastos aos recursos que somos capazes de gerar e fazê-lo num prazo útil. Quão curto e, consequentemente, qual a intensidade do esforço são matérias de discussão e campo de profundas divergências. É natural que quem emprestou queira ser ressarcido depressa. Como é natural que quem prevaricou não queira uma carga demasiado pesada que o force a trabalhos forçados. Qualquer que seja o ponto de vista, parece de razoável bom senso que quem gere o empréstimo não exagere e corra o risco de matar o doente com a cura ou, como diz o nosso povo, perder pau e bola. Tratando-se de países democráticos tem de haver, primeiro e principalmente, a preocupação de salvaguardar que o processo não degenere numa espiral de contestação social e violência de que se aproveitem forças populistas e extremistas. Tudo o resto decorre deste aspecto essencial.
Por isso, arrepia a declaração de Assunção Cristas. A sensibilidade deles para estas questões não é tanta quanto a nossa. Até onde irá? Quais os valores por que se regem? E quem são eles? Os técnicos que nos visitam ou um qualquer directório, asséptico e incógnito? Como decidem? Com base em teorias que, dizia Krugman, não têm conteúdo operacional? Qual a sua margem de manobra? Quanto lhes custará uma má decisão? Quem os avalia?
Conhecemos os termos do memorando de entendimento. Muitos são objectivos. Outros, nem tanto. Já se percebeu, com a TSU, que o que tem de ser tem muita força. Ou não? É evidente que o Governo, fosse qual fosse, não pode tomar a iniciativa de propor alterações que possam ser lidas como incumprimento. Catroga dizia, e bem, esperar que fosse a troika a tomar a iniciativa de alterar alguns prazos e termos. Uma questão de bom senso. Terão essa sensibilidade? A sensibilidade para perceber que, nas actuais condições da economia mundial, o processo de ajustamento se traduz numa espiral viciosa? A sensibilidade para perceber que, neste contexto, mesmo que se esteja a cumprir o compromisso no lado da despesa, e em parte por isso, não se consegue atingir o objectivo do défice? E que, para o conseguir, seriam precisos mais impostos que, se forem os que se anunciam, condenariam uma economia anémica e poderiam conduzir à revolta social?
Não sei qual será a sensibilidade deles? Nem quem, e como, manda? Haverá aqui um problema de agência, com os agentes a escaparem ao criador? Parece-me é que a sensibilidade deles será maior se nós formos capazes de nos entendermos. Manter o PS no compromisso é essencial, para o país e para o próprio PS que, de outro modo, seria tragado e descaracterizado pela deriva radical que se seguiria. Quanto ao PC e BE não há que alimentar ilusões. Contestarão o acordo. Se, porém, dessem passos para reconhecer a inevitabilidade da reforma do Estado, no sentido de o tornar mais operacional e leve ao bolso dos contribuintes, ganhariam legitimidade para exigir (bastante) mais no domínio da redistribuição do rendimento. Talvez isso seja pedir de mais a algumas corporações. Qual será a sensibilidade delas?