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Aquilo que se temia como cenário mais negativo para o país, vai mesmo acontecer - redução nos salários dos funcionários públicos, novo ataque às reformas, cortes nas pensões de sobrevivência. O orçamento de Estado para 2014 prepara-se para ser mais um instrumento de empobrecimento das famílias, de prolongamento da recessão e de confirmação das negras expectativas dos portugueses.
Que não, diz o Governo. Se a Europa crescer visivelmente, se as economias dos nossos principais parceiros comerciais progredirem e se, por isso, as exportações continuarem a crescer sem que as importações disparem, então a recuperação poderá acontecer no próximo ano. Se, se e se... De uma coisa, porém, não temos dúvida - em 2014, a classe média leva um novo rombo, a bolsa dos portugueses vai ficar ainda mais curta e o desemprego vai continuar com números inquietantes. De tudo isto estamos nós a ter agora conhecimento. Mas o Governo sabe-o há muito, mesmo antes das últimas avaliações feitas pela troika. E foi deixando escapar aqui e ali uma informação. Dando uma no cravo e outra na ferradura, ao anunciar os bons sinais dados pela economia nacional enquanto ameaçava com um novo resgate, ou falando na queda da TSU e escondendo o corte nas pensões de sobrevivência, os dois líderes do Governo foram adiando as más notícias até ao inevitável momento de ter que as concretizar na formulação da proposta de OE. E aqui estamos nós, desejando que o próximo ano nunca chegue, na certeza de que nos seus efeitos imediatos 2014 será pior do que 2013.
Ora, é neste panorama que a RTP se presta a um papel a todos os títulos reprovável. O primeiro dos programas "O país pergunta", passado na quarta-feira e em que foi interrogado o primeiro-ministro, foi a mais descarada sessão de propaganda do Governo a que já assistimos. Digno mesmo das mais "musculadas democracias" da América Central e do Sul. Razão tinham os que protestaram contra a sua realização no período que antecedeu as eleições autárquicas, levando a Comissão Nacional de Eleições a condenar a sua apresentação nessa altura e o primeiro-ministro a adiar a sua participação.
Quero crer que a escolha dos portugueses que participaram na sessão de perguntas foi feita de forma séria e que todos os que lá foram o fizeram na convicção de que estariam a dar um contributo para que Pedro Passos Coelho tomasse consciência das enormes dificuldades em que as políticas que protagoniza colocam as famílias.
Mas o resultado foi péssimo, com exceção dos minutos finais, da responsabilidade de Carlos Daniel. Usando um oco tom intimista, o primeiro-ministro respondia às perguntas como lhe apetecia, sem direito ao contraditório, perante uma assistência que disciplinadamente o ouvia. E até houve perguntas bem interessantes que, em condições normais, dariam motivo a séria controvérsia. O que nunca aconteceu. Assistimos a longos monólogos após as perguntas, que apenas visavam demonstrar-nos que as políticas do Governo não têm alternativa e que tudo está sob controlo. Mais uma vez, resultou claro que Pedro Passos Coelho se sente investido na missão patriótica de nos salvar. Ou ele ou o caos. "Se eu falhar a minha missão, é o país inteiro que falha", disse-nos. Poupem-nos!
O modelo de programa foi importado dos Estados Unidos da América, onde é conhecido como "town hall meetings" e deve a sua popularidade à campanha eleitoral de Bill Clinton em 1992. Sim, campanha eleitoral. Evoluiu depois para um modelo em que o público selecionado faz a mesma pergunta a dois candidatos. Aí, sim, o contraponto é feito imediatamente e quem fez a pergunta avalia, pela qualidade das respostas, o valor dos candidatos. Mas, convém insistir, este modelo é sobretudo usado nas campanhas eleitorais e para confrontar ideias e projetos.
O que se passou na quarta-feira foi uma caricatura do modelo em que a RTP se baseou. Para ser um vulgar programa de animação só faltou, por trás das câmaras, o diligente colaborador que a certo ponto levanta um cartaz onde se lê "aplaudir" (e o público bate palmas), "rir" (e o público ri) ou "oh!" (e o público faz um ar de espanto). Por favor, tratem-nos a todos como menos estúpidos.
Já sabemos que agora a RTP se sente na obrigação de convidar outros líderes partidários. Imagino que depois de Seguro, se convida Paulo Portas.
Por favor. Seria pedir muito se este primeiro programa fosse, desde já, o último?