Para os mais jovens, convém explicar que "a situação" era um eufemismo antigamente utilizado para designar o regime autoritário vigente em Portugal até à Revolução Democrática de 1974. Um substantivo aparentemente descomprometido e inócuo que permitia "qualificar" a longevidade da interminável ditadura, o ódio à mudança que ela inspirava, a acomodação mesquinha, de muitos, a uma "situação" que apenas era tolerável pelo receio ativamente infundido de que o "desconhecido" pudesse ser ainda pior que o miserável presente. "A situação", com minúscula e artigo definido, era sinónimo de uma "ordem" fundada no medo, alimentada pela cobardia, a resignação e a impotência. Mudanças profundas ocorreram em Portugal desde então, promovidas pelo clima de liberdade e a emergência da cidadania democrática, mas persistem ainda na cultura política hoje dominante velhos hábitos de desqualificação da frontalidade e do leal confronto de ideias, de reles desconfiança, de velhacaria e sistemática oposição à mudança.
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Perante a situação dramática em que o país se encontra, era de esperar que os governantes dessem o exemplo e "metessem as mãos à obra" para eliminar os desperdícios e abusos que tanto deploravam, e para oferecer um sentido percetível aos sacrifícios que todos os dias nos exigem.
Em vez disso, há toda uma agenda de reforma urgente da República que vem sendo sucessivamente adiada, não só agora mas desde há longos anos, sob os pretextos mais disparatados. É o caso da reforma do Estado e do sistema político. Da lei eleitoral e da tipologia dos círculos eleitorais que a Constituição admite que possam ser plurinominais e uninominais ou combinados, segundo qualquer critério, desde que não prejudique a regra da proporcionalidade, oferecendo uma liberdade de conformação legislativa que até hoje não foi aproveitada. Das listas fechadas de candidatos cozinhadas no conforto dos bastidores partidários. É ainda o caso da reforma da administração pública e do governo local, esta, recentemente abandonada devido a querelas entre os partidos da coligação. Da criação das regiões administrativas, que é um imperativo constitucional mas foi deliberadamente armadilhada pela imposição de requisitos desmesurados e a proposta de geografias irrealistas. Da disciplina complacente do financiamento dos partidos que não impede o abuso do poder e continua a alimentar todo o tipo de suspeições que permanentemente impendem sobre a credibilidade da ação política. É o caso também da urgência de um regime de incompatibilidades que claramente separe o interesse público das conveniências privadas, designadamente, aprovando a exigência da exclusividade no exercício da representação parlamentar ou proibindo a promiscuidade das "transferências diretas" do exercício de funções políticas para cargos nas instituições privadas das áreas "tuteladas"... e vice-versa!
Na semana passada, António José Seguro teve a ousadia de chamar a atenção para a urgência da reforma do sistema político. Logo, os guardiões da boa consciência o vieram acusar de prosseguir objetivos ocultos, de conspirar contra o princípio da proporcionalidade e a representação dos pequenos partidos, de menorizar a suma importância do debate em curso sobre um orçamento do Estado que ainda ninguém viu nem sequer foi apresentado na Assembleia da República e por fim, até no grupo parlamentar do Partido Socialista, emergiram inesperadas sintonias na indignação contra a eventualidade de alguma redução do número de deputados que nos representam no Parlamento... embora a própria Constituição admita que esse número possa oscilar entre os atuais 230 - limite máximo! - e o mínimo de 180 titulares do poder legislativo.
Ao mesmo tempo que se denuncia os perigos reais que ameaçam o regime democrático, o descrédito da política ou a mediocridade dos seus agentes, com enorme hipocrisia continua-se a ignorar a necessidade premente de compreender os erros cometidos, identificar responsabilidades e procurar as soluções capazes de regenerar os vícios que reconhecidamente afetam a autenticidade da representação democrática e nos conduziram à situação presente.