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Depois de obter um sucesso retumbante nas eleições autárquicas de 2013, o PS ficou-se por uma magra vantagem nas eleições europeias do ano seguinte e parecia resignar-se a dar continuidade às políticas do Governo de coligação PSD/CDS, ainda que reprovasse o que qualificava como excessos e reclamasse mais brandura na administração da receita. Era contudo evidente que o erro não estava na quantidade da dose mas na qualidade da terapia. O Governo prosseguia a sua própria estratégia de sistemático desmantelamento do Estado, de alienação ao desbarato das poucas empresas lucrativas que permaneciam na esfera pública e na degradação programada dos serviços prestados nas áreas da saúde, da educação ou da segurança social. O empobrecimento do país, a ruína do tecido empresarial e o crescimento brutal do desemprego eram justificados como consequência inelutável de uma economia parasitária mantida à custa dos favores do Estado e da generosidade dos nossos credores. Enfim, diziam eles, era este o preço a pagar por termos vivido, longo tempo, "muito acima das nossas possibilidades". António Costa percebeu que era obrigação do PS oferecer aos eleitores uma política económica e social alternativa às opções ideológicas da Direita e que preservasse o projeto europeísta de Mário Soares sem abdicar da autonomia crítica que a defesa dos ideais fundadores da União dramaticamente exigia aos socialistas.
E, por isso, não se deixou ficar tranquilamente na presidência da Câmara da principal cidade do país. Em 2014, abandonou a Câmara que tinha conquistado e desafiou a direção do partido, enfrentando ventos e marés adversas, entre denúncias de ambição desmesurada e acusações histéricas de hipócrita e traidor. A audácia podia ter-lhe saído bem cara, mas teve sorte e ganhou. Ganhou o partido para tentar ganhar o país em outubro de 2015. O país, contudo, não lhe deu a vitória que precisava nas eleições legislativas mas nem por isso desistiu. Embora a maioria exigisse a mudança, os socialistas não obtiveram mais do que um modesto segundo lugar na ordem de preferências dos eleitores. Mas a vontade expressa pela maioria dos eleitores iria acabar por prevalecer no cenário mais improvável, fundada nos três acordos separados que deram forma à atual maioria parlamentar, contra a vontade do presidente da República, contra a feroz indignação de toda a Direita, contra a opinião pública dominante e a tradição constitucional até aí vigente. E triunfou apesar do ceticismo de uma grande parte do seu próprio partido, das reticências da Europa, do buraco inesperado do Banif e da crise da Banca perversamente camuflada até essa altura por obra das irresponsáveis motivações eleitoralistas do Governo cessante.
Passaram cerca de dois anos sobre a apresentação pública dos cenários macroeconómicos de Mário Centeno cuja exatidão e acerto já não merecem, hoje, contestação credível. Bem pelo contrário, ficaram definitivamente desmascaradas as doutrinas económicas que pretendiam dar cobertura científica às opções políticas e ideológicas do Governo do PSD e do CDS para as quais - recordam-se ? - não existia alternativa! Mas não é verdade. Há sempre alternativa onde exista vontade e esperança. Esperança na melhoria do bem-estar da sociedade portuguesa. Esperança nas reformas europeias que continuam a tentar abrir caminho. Esperança na derrota do populismo de extrema-direita que, diariamente, Donald Trump se esforça por confirmar.
É verdade, como reconhece Nicolau Santos no "Expresso Diário" de segunda-feira - "O cubo de Rubik de Centeno" - que não se deve a António Costa "a canonização dos pastorinhos, o tetra do Benfica e a vitória na Eurovisão". Mas até a sorte, há que merecê-la!
*DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL