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Ganhar uma eleição não garante o direito a governar com poder absoluto. Pelo menos em regimes de estado de direito democrático. Nestes regimes há separação de poderes, há pesos e contrapesos, há forças de bloqueio legítimas, para recuperar uma expressão com história na nossa democracia. A regra da maioria não se confunde com o direito à opressão da minoria, devendo antes ser compatível com o respeito pelo pluralismo e a diversidade. Ou seja, nos estados de direito democráticos há duas exigências permanentes: respeito pelas instituições e a separação de poderes, por um lado, e cultura e prática de negociação, por outro. A umas instituições cabe governar, a outras legislar, a outras fiscalizar e acautelar o cumprimento das leis, a outras fazer justiça. E, no exercício dos poderes legislativo e executivo, cabe a quem governa a obrigação da negociação e do convencimento.
Infelizmente, os tempos estão um pouco confusos e paira no ar um certo fascínio pelo poder absoluto. Este manifesta-se, justamente, na incapacidade para negociar, dando-se a entender que tal seria uma perda de tempo e sugerindo-se que contrariar a vontade do Governo é ilegítimo e paralisador, típico de "velhos do Restelo" sempre do contra, que resistem a resolver problemas. O fascínio manifesta-se ainda na menorização das instituições que exercem o seu poder de tutela da legalidade ou constitucionalidade das propostas do poder executivo. Mas também no desprezo pelas instituições que têm competências próprias de prestação de serviços públicos, pela sua autonomia técnica e pela independência dos seus dirigentes. Diria que não se trata apenas de fascínio pelo poder absoluto. É antes uma pulsão para fazer alinhar as instituições e os cidadãos numa só voz, subordinando tudo e todos a um alegado superior interesse nacional.
Vem isto a propósito de métodos adotados pelo Governo que, sem negociação e sem audição de interessados, se propôs alterar as leis de estrangeiros e da nacionalidade, rever o código do trabalho ou reformular os organismos públicos. A doutrina parece ser a seguinte: sempre que o Governo obtém uma maioria de deputados no Parlamento para aprovar o que quer que seja, tem legitimidade absoluta para decidir e executar sem auscultação ou negociação prévias. As respostas que o Governo tem dado às instituições que são contrapeso do poder executivo, sempre que estas legitimamente levantam dúvidas sobre as suas propostas, como foi o caso do parecer do Tribunal Constitucional sobre a lei de estrangeiros, ilustram bem aquela doutrina. São más práticas que corroem a democracia e o estado de direito.