A tentação do poder de controlar quem o vigia
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Normalmente, não é bom sinal ouvir os políticos falar da importância da liberdade de imprensa, porque, muitas vezes, isso significa que há riscos para o respetivo exercício. Esta semana, o assunto esteve em destaque no Parlamento português, onde partidos e Governo concordaram que se trata de um direito intocável. Ora, não é esse o entendimento de muitos países. Por exemplo, dos EUA, onde o ataque aos média entrou numa certa normalidade.
O presidente Marcelo Rebelo de Sousa já tinha avisado: o escrutínio jornalístico ao Governo é o preço a pagar pelo exercício de cargos públicos. Tal afirmação pressupõe a existência de algum mal-estar a esse nível, a tal ponto que a Direção de Informação da RTP sentiu necessidade de emitir uma nota onde assegura que os seus jornalistas “não se deixam condicionar e continuarão a cumprir o seu dever profissional”. O ministro da tutela, Pedro Duarte, depressa veio garantir que a liberdade editorial do serviço público de média “é absolutamente sagrada”. É bom clarificar as linhas vermelhas que ninguém deve pisar, sobretudo numa altura em que testemunhamos situações impensáveis, como aquelas que ocorrem nos EUA.
Numa decisão inédita, a Administração norte-americana fez saber que, a partir de agora, escolherá os jornalistas que acompanharão os eventos restritos do presidente (na Sala Oval e no Air Force One, por exemplo) no lugar da Associação de Correspondentes da Casa Branca. Termina abruptamente um protocolo com mais de um século, numa decisão que configura um ataque preocupante à liberdade de imprensa. Embora a Administração Trump justifique a medida com o argumento do combate ao monopólio dos média tradicionais, os efeitos são devastadores para a democracia, pois facilmente se depreende que as escolhas recairão em meios alinhados com o poder instituído e em conteúdos que deixam de ser jornalísticos para adquirem o registo da propaganda.
Ao excluir jornalistas críticos das suas instituições centrais, a Administração norte-americana reduz o contraditório e a diversidade de ângulos de abordagem, moldando as narrativas de forma favorável a si. Não se pense, porém, que esta preocupante situação se circunscreve aos EUA. A retórica utilizada por Trump e por figuras como Elon Musk tem tido réplicas em demasiados contextos, o que demonstra que o perigo é concreto e global. E quando o poder dá sinais de querer controlar quem o controla, não é apenas o jornalismo que está em risco, é a própria democracia que entra num beco sem saída, ou seja, todos nós enquanto cidadãos comprometidos com o bem público.