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O Paulo teve o Porto a seus pés porque o percorria com todos os seus passos. Com todas as ideias de futuro, a grandeza de nos abrir ao encontro, repletos de motivação e desejo de fazer nação. A cultura na cidade do Porto teve o homem que tanto merecia nestes dois últimos anos, com cintilante empatia e com tão grande projecção para o prometido. Paulo Cunha e Silva teve o Porto a seus pés porque tinha o Porto a fervilhar nas mãos com o seu tão peculiar brilho nos olhos.
Quase agora. Quem acompanhava o Paulo Cunha e Silva nas redes sociais, lia-lhe os pensamentos, sonhava as ideias e caminhava paralelamente a uma cronologia líquida do tempo. A maior parte do tempo, corria. Era o tempo da sua cidade líquida. Não se escondia, tenho a ideia, minha. Desejava-a cá fora dizendo ao que ia, presente todos os dias, horas e minutos em sucessão, quase sempre pela descoberta e pelo desafio, presente, quase agora, como se fosse aqui ainda. Nunca me pareceu recear o desequilíbrio, antes e pelo contrário, o elogio da coragem e da inteligência que sorria perante a pequenez de espírito. A exposição diária da vida e da obra é algo que tantos sustentam com parcimónia, com regras e excepções, torções menores à conveniência, desvios politicamente pensados às normas, um pouco disto ou daquilo, quando muito amestrando um pequeno excesso convenientemente puxado dentro da caixa. Os últimos meses que conheci do Paulo Cunha e Silva, os meses que do Paulo conheci pessoalmente, atordoavam pela empatia de quem conseguia provar pelo simples instante que valia a pena saltar para fora da caixa, ouvir para ver, tornar sustentável uma cidade que pudesse sonhar ao seu tempo próprio. Furacão ou cometa, homem locomotiva, granito iluminado por todas as cores.
Hoje de tarde, enquanto escrevo. O nome do seu perfil no Facebook, subitamente, mudou:
Em memória de
Paulo Cunha E Silva
Os dias que intensificam a perda porque a asseguram sólida. Pequenos factos a acrescentar certeza ao desenlace que assim é. Na antecipação do futuro, também aqui, terá autorizado e nomeado alguém para alterar o seu título em caso de morte, perpetuando o seu sentido de agora. Caramba, ainda agora foi o Paulo, aqui, a acontecer diante dos meus olhos, enquanto escrevo. Há homens insubstituíveis, com certeza. Os singulares. Aqueles que nos marcam pela inteligência, afectividade, visão, mundo, dedicação e trabalho, sentido de humor. A cultura, como bem referia Rui Moreira, "não é um luxo, não é um bem efémero e leviano". É perene, insubstituível, parte do "cimento que se infiltra" como Paulo Cunha e Silva gostava de dizer, transportando esse olhar em vida tão a sério. Sempre ao arrepio do cinismo, levando o que merecia ser levado, nunca deixando que lhe subtraíssem o sorriso, a ironia, o humor, o golpe de asa.
Também agora. A inquietude e o rasgo. Fulminante. Para quem ousa viver depressa pode não haver depressa demais e isso, confesso, magoa. "Quem ficou com os esquálidos filetes de pescada?", atormenta-me. Ainda agora. A dor e a coragem dos outros. A dor da partida daqueles que mais o amavam, em particular, a dor da partida daqueles que mais o admiravam, em cortejo silencioso e cúmplice pelas ruas do Porto. Depois da notícia abrupta e matinal, digerida aos solavancos, depois do soco no estômago, a certeza de que não nos podemos resignar ou aninhar, pequenos, perante o que nos deixa em mãos. Não podemos ser reverentes, temos que ser gratos. Basta suster o luto para perceber o tanto que nos deixa em mãos e à espera de ser feito.
Ontem mas ainda agora. Dia 25 de Abril, após o primeiro acto da "Cultura em Expansão" deste ano, Gabinete do Munícipe. No final do concerto do "Steel Drummimg toca Zeca Afonso", canta-se o "Grândola Vila Morena" num registo fúnebre, lento e doloroso acerca do qual o Paulo, a irradiar mundo, dizia: "parecia a Ave Maria do Schubert". No momento em que o concerto acabou, alguém nos passou um cravo vermelho para as mãos mas não fiquei com ele muito tempo. À distância de uns metros, atirei-o para as mãos do Paulo que, ainda sentado e surpreendido, o deixou resvalar para o colo. Não lhe atirava com um ímpeto de liberdade. Devolvia-lhe um pouco da liberdade que nos deu. Agora. Ainda e sempre.