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Eu tinha que te escrever este texto. Perdoa-me este tratamento coloquial, na primeira pessoa, nós que sempre nos tratámos por senhor, a cada um o seu, acrescentando o respetivo nome, eu, no teu caso, o respetivo título que é em ti há décadas o substantivo e o adjetivo.
Escrevo-te no momento em que sei da última notícia dos teus dias, doendo-me por o fazer. Mas sobretudo sem saber se vou pedir para me publicarem este texto. Tenho só essa promessa por cumprir, nós que deixamos por cumprir (a redundância é propositada) uma ida a Fátima quando eu quase fui derrubado por um mal ruim que se entranhou nos ossos do meu filho.
Escrevo-te, presidente, porque me pediste para o fazer num longínquo ano em que perdi o meu querido Zé, jornalista dos jornalistas, mentor, o meu querido Zé Queirós, levado por um cancro contra o qual lutou até ao fim, e cujo texto, escrito sem amarras, dizias, para orgulho meu, ser das coisas mais demolidoras que os afetos podiam pôr em letras. Querias que escrevesse um igual para ti. Não sou capaz.
Conhecemo-nos há 15 anos, quando eu dizia que não percebia nada de futebol, e não, e me dizias, com aquele arrastar de voz grave e pronúncia cerrada, que me era útil: “Dá-lhe jeito, não é?”. Dava. Sempre deu.
Como dava jeito esconder-me e não dizer nada hoje, para não me apontarem o dedo, a nós que sempre nos colaram uma cumplicidade que só existia pessoalmente. Nunca soube porquê. Mas existia. Acho apenas que te divertia ouvir as minhas gargalhadas quase infantis e soltas perante as tuas piadas mais inusitadas.
A nós. Estive a vasculhar e não encontro registo de tantas zangas públicas, lavradas em comunicado, entre o F. C. Porto e o Jornal de Notícias como as que houve durante a minha direção, nada de anormal quando um jornal cumpre a sua obrigação de informar e uma instituição cumpre a sua legitimidade de tentar limitar os danos. Tudo público e escrito, as pessoas é que não se lembram. E nós ficávamos de dieta. Sem almoçar. Um com o outro.
Vi-te a última vez quando assistias na televisão a um jogo frente à Lazio. Em tua casa. Nunca frequentámos a casa um do outro. Uma conversa a correr com a bola, o sofrimento com a equipa, nada naquele momento (ou noutro) era rancor, ou raiva, só futebol, só Futebol Clube do Porto, só angústia. Tanto amor ao clube, à cidade, ao país, tanta fé inabalável na certeza de que os erros, aquilo de que te acusam, as verdades e as outras, tudo isso a história o escreveu.
Estaríamos juntos uma mão cheia de vezes por ano. Falávamos de vez em quando, talvez uma vez por mês, depois disso, depois de perderes, depois de a doença ganhar espaço sem nunca te ganhar vida, e lembro-me bem do que dizias, do cancro, e dos amigos, e dos outros todos, depois disso falávamos muitas. Nas duas últimas, uma sobre um livro que estarias a escrever, outra só porque sim, atendias invariavelmente da mesma forma, a que eu invariavelmente soltava em resposta uma gargalhada infantil: “Cemitério de Agramonte, boa noite. Shiuu, Faça pouco barulho, os meus vizinhos estão a descansar.”
Descanse bem, Presidente.
* Amigo