Nota prévia. É quase estranho escrever um texto no dia em que se sabe da morte de um grande escritor. Por maioria de razão, é mais estranho ainda escrevê-lo no dia em que se sabe da morte de um enorme escritor como Gabriel García Márquez. De todos os livros que lhe li, guardo, naturalmente, "Cem Anos de Solidão". Mas guardo como mais especial o "Amor em Tempos de Cólera". Talvez ainda mais agora, quando tantas "cóleras" atravessam o Mundo e até este meu país, se reconheça e admire aquilo que o escritor nos deixou: esperança, embora esperança triste.
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Existem ou não limites à liberdade de expressão e de associação? Se admitirmos a premissa de que não existem direitos com caráter absoluto, a resposta só pode ser positiva. Mas, nestas coisas dos limites a direitos fundamentais, o mais difícil é quantas vezes ter o sangue frio necessário para distinguir aquelas que são as nossas convicções daquele que deve ser o enquadramento desses mesmos direitos num Estado de direito democrático. Aquilo de que não gostamos ou até detestamos deve, quase sempre, ser protegido: porque a liberdade de expressão não se refere, essencialmente, ao gosto. Protege, isso sim, o (des)gosto, e ainda bem, porque, por efeito de retorno, também garante a nossa liberdade perante as tentações daquele que, numa posição de poder, não aprecia aquilo que dizemos ou defendemos.
Por conseguinte, a proteção da liberdade de expressão e de opinião pode ser percebida numa dimensão "egoísta": não queiras proibir, porque podes ser proibido.
No entanto, há limites à tolerância democrática. E essa foi a posição do Supremo Tribunal holandês num caso que já deu muito que falar, devido ao tipo de "expressão" e ao objetivo da "associação" em causa.
Em causa estava a organização Martijn, que se dedicava, nomeadamente através da internet (mas também de uma revista vendida por correspondência), a promover a pederastia. O objetivo afirmado dos seus membros, por conseguinte, era o de criar um "fórum de discussão a favor da aceitação social das relações sexuais entre adultos e crianças (a partir dos 12 anos), sempre que estas fossem consentidas e aceites pelos pais".
Por estranho que nos possa parecer (pelo menos a quem, como ao signatário, este "ideário" seja repelente), a decisão do Supremo holandês veio a encerrar um processo já longo, em que, sucessivamente, jurisdições inferiores fizeram prevalecer, ora a liberdade de expressão e de associação, ora o caráter socialmente inaceitável da promoção da pederastia.
E o caso poderá afigurar-se ainda mais esdrúxulo uma vez que o ex-presidente da organização, Ad van den Berg, já antes fundara o Partido da Caridade, Liberdade e Diversidade (entretanto dissolvido por decisão judicial), defensor da pederastia, da zoofilia, da pornografia infantil e do consumo de drogas leves a partir dos 12 anos. O mesmo lacrau, note-se, já em 1987 fora condenado ao pagamento de uma multa (!) por ter abusado sexualmente de uma criança de 11 anos; e, em 2010, foi finalmente condenado a uma pena de três anos de prisão pela posse de 150 mil fotografias e 7500 vídeos de pornografia infantil. Coisa pouca, tudo platónico e no plano da liberdade de expressão: como à saciedade se vê.
O Supremo holandês entendeu que a proibição da organização Martijn se impunha para proteção da "integridade física e psíquica dos menores quando mais carecem de proteção e mais dependentes estão das pessoas adultas". E mais acrescentou que "este tipo de contactos é contrário aos valores da sociedade holandesa e pode deixar sequelas para toda a vida".
Por razões que me dispenso de desenvolver, obviamente acompanho o sentido desta decisão. Mas choca-me que tenha sido necessário tanto arrazoado jurídico e judicial para se conseguir chegar a este ponto. Pior do que isso, não posso deixar de pensar que, no limite, o erro daquela organização foi o de, há tempos, ter levado a provocação longe de mais, exibindo fotografias da princesa Amália, herdeira do trono holandês e menoríssima, acompanhadas de comentários lascivos.
De como se demonstra que o relativismo, quando levado ao extremo, é violador de direitos.
E de como se demonstra que, em casos-limites, a democracia só o é se for intolerante.