A transição tecno-digital e a racionalização da esfera pública
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A transição tecno-digital é a grande força transformadora do nosso tempo, no que diz respeito à esfera pública da sociedade da informação e do conhecimento. Essa transformação é feita de liberdade, transgressão e condicionamento, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, uma viagem que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade. No que diz respeito ao regime de transição da linguagem e da comunicação, depois da imprensa, dos livros e jornais, depois da rádio e televisão, temos agora os écrans de computador, os smartphones e muitos outros dispositivos de realidade aumentada e virtual, ou seja, assistimos a uma transformação estrutural da esfera pública e à emergência de uma outra racionalidade comunicativa.
Já sabemos que a nossa racionalidade é limitada, mas também sabemos que fomos capazes de encontrar um fundo comum de discussão em que a contextualização, a inteligência emocional, a argumentação racional e o contraditório fazem parte da nossa racionalidade comunicativa. Esta é a fileira da ação comunicativa e a base da nossa esfera pública democrática tal como a conhecemos no mundo ocidental onde a divisão tripartida dos poderes, as liberdades públicas e os checks and balances asseguram, apesar do ruído, o compromisso da política e a política do compromisso. Ora, a transição para a sociedade tecno-digital faz emergir uma outra cadeia de valor, mais próxima de uma física social, onde a ciência dos dados, o protocolo algorítmico, a inteligência artificial e as máquinas aprendentes, o metaverso e os ambientes simulados, aparecem como um equivalente funcional da esfera pública e da vontade geral de outros tempos. Estamos perante uma atualização da teoria behaviorista e utilitarista do comportamento humano e a substituir a racionalidade do agir comunicacional por uma racionalização tecno-digital baseada na ciência dos dados que nós produzimos constantemente no universo das redes. Digamos que, ao programar o protocolo algorítmico numa certa direção, a linguagem tecno-digital filtrou, padronizou, normalizou, racionalizou o nosso comportamento e, dessa forma, poupou-nos ao ruído e desperdício da racionalidade comunicativa tradicional baseada na discussão plural, a argumentação contraditória e a comunicação livre e aberta.
Sabemos, também, que no atual contexto, a velocidade das transições e o hipertexto forjado nas redes sociais excedem, largamente, o tempo da política e mudam a nossa perceção do tempo e do espaço, agora que estamos a migrar para o universo do
ciberespaço onde a velocidade é uma vertigem e o risco de colisão é cada vez maior. De facto, o tempo lento da política não se compadece com o infinitamente pequeno do tempo instantâneo, o tempo infra, do reflexo e não da reflexão, tudo isto por que o tempo humano foi ultrapassado pelo tempo-máquina e o poder foi delegado nas máquinas do tempo. Imagine-se, por exemplo, a velocidade de uma tecnologia como a inteligência artificial e a automação das máquinas inteligentes e estaremos cada vez mais próximos de muitos incidentes e acidentes de percurso. De certo modo, a História transferiu-se da Terra para o Céu (o ciberespaço e a computação em nuvem), a aceleração do tempo tornou o mundo plano e emergiram os não-lugares onde a identidade dá o lugar à rastreabilidade e à vigilância.
Sabemos, ainda, que, devido à vertigem informativa e à alucinação das redes sociais, estamos todos, ou quase todos, a migrar para uma espécie de colónia virtual, onde muitos treinam o seu servilismo voluntário, a sua falta de empatia humana e uma nova tirania dos sentimentos. Esta migração para a colónia virtual acelera em nós o processo de descontextualização da tomada de decisão, a desconstrução da cultura geral e do bom senso e mina a nossa vontade para as políticas do compromisso. É certo, nós não somos como as abelhas ou as formigas que funcionam de acordo com as leis de uma certa física social e, além disso, os enxames digitais são bolhas de consumo e comunicação muito perigosas. Não obstante, as tendências de racionalização da sociedade da informação acentuam-se e o espaço público democrático é, cada vez mais, centrifugado pelas plataformas tecno-digitais que, por enquanto, se revelam incapazes de ação política e cognitiva consequente.
Esta é a coabitação em que vivemos atualmente. De um lado, a diversidade representativa e institucional e a opinião dos outros, uma racionalidade própria da discussão, da argumentação e do contraditório que enriquece e constrói a democracia política. Do outro lado, o código, o protocolo algorítmico, o condicionamento preditivo, a revisão dos factos em nome de uma verdade corporativa, de grupo, identidade e pertencimento. O contexto e os argumentos contam pouco, a ação comunicativa é normalizada, os comportamentos e os resultados são pré-determinados e prescritos pela ciência dos dados e dos algoritmos. É o tempo da novilíngua tecno-digital e da racionalização comunicativa da esfera pública. É aqui que nos encontramos, algures entre o capitalismo de informação e o capitalismo de vigilância, de smartphone na mão e nas mãos da caixa negra algorítmica que faz o registo total do nosso comportamento.
Aqui chegados, sabemos, também, e felizmente, que os algoritmos, por mais inteligentes que sejam, não eliminam a memória, a contingência e a imaginação. Não esqueçamos, nunca, que a verdade é uma construção social e isso dá sentido à vida em comum, é o seu fundamento existencial. Além disso, não podemos prescindir do compromisso da política porque um somatório de esferas privadas tecno-digitais não faz uma esfera pública e as desigualdades sistémicas nunca serão eliminadas. Acresce que os instrumentos da sociedade digital são muito preciosos para construir a convergência entre valores pessoais e valores sociais.
Em síntese, não podemos tolerar que a embriaguez informativa crie uma agitação no sistema cognitivo que destrua a perceção da realidade e a ação racional. O oceano de informação tira-nos o discernimento necessário para avaliar a realidade e a verdade. A sociedade está cada vez mais centrifugada e indiferente à verdade dos factos e esta manifestação patológica da racionalização tecno-digital impede o discurso complexo e diferenciado, logo o conhecimento, perdendo-se, assim, muita da consistência discursiva e narrativa. Por isso, se percebermos, de modo racional e consciente, que somos emissores ativos de informação e continuamente manipulados pelos arsenais da contrainformação, nunca poderemos aceitar prescindir da política e do seu compromisso, embora os seguidores do Big Data e da IA nos queiram convencer de que seria muito útil prescindir da política.
Notas Finais
Passou aproximadamente um século, entre a racionalização burocrática teorizada por Max Weber e a racionalização algorítmica, preditiva e prescritiva, das máquinas inteligentes e protocolares dos nossos dias. Acresce que a transição das redes centralizadas para as redes descentralizadas e distribuídas da internet aumentou a tal ponto a liquidez e volatilidade do sistema de informação e comunicação que é praticamente impossível à inteligência humana controlar e fiscalizar a inteligência artificial. E o perigo reside justamente aqui, isto é, a dificuldade em auditar algoritmos com um grau de autonomia elevado e que funcionam como uma caixa negra à margem da lei e dos organismos de regulação.
Esta transição imparável para a sociedade digital e algorítmica revela-nos, igualmente, como se processa a transição do filtro institucional da deliberação política convencional para o filtro procedimental e protocolar de um código informático criado, é bom não esquecer, pela inteligência humana. Passamos, assim, da lentidão da política,
não obstante transparente, previsível e auditável, para uma vertigem tecno-digital, uma espécie de despotismo iluminado das máquinas inteligentes que a burocracia convencional não acompanha e muito menos a iliteracia geral do cidadão comum.
A grande questão que fica em aberto pode ser expressa do seguinte modo: perante a crescente digitalização e artificialização da sociedade, vamos nós reinventar o grande compromisso da política e das suas instituições ou vamos ceder face a uma outra física social, engendrada por máquinas inteligentes e algoritmos, que nos confinam e condicionam por meio da normalização e padronização dos nossos comportamentos, ao serviço sabe-se lá de quem?
Fica aqui o aviso. Retomemos o essencial, a saber, o bom senso. o bem comum, a ética do cuidado, a utilidade social do respeito, o fundo comum das coisas, a confiança nas instituições, a natureza transparente e cristalina da busca da verdade. A nós, simples cidadãos, resta-nos aceder à literacia digital, estar vigilantes, apreender a importância da empatia e decifrar o processo da justiça digital e, pelo meio, ousar sair do servilismo voluntário em que nos querem encerrar.