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1. Volta a fazer caminho a ideia antiga que exige à ciência utilidade imediata, em particular económica. O financiamento em ciência teria assim de ser avaliado em função do seu retorno económico. Ora, foi mesmo contra estas ideias, proclamando em alternativa o princípio "à economia o que é da economia, à ciência o que é da ciência", que o sistema científico se desenvolveu e consolidou em Portugal. E, já agora, que a economia acelerou a sua modernização, tirando partido da maior produção científica de conhecimento que resultou do desenvolvimento autónomo da ciência. O eventual regresso à ideia de que a ciência deve ser movida pela utilidade dos seus resultados terá os mesmos efeitos que no passado: atrofia da ciência e menos conhecimento novo para alimentar a inovação e a economia.
2. A produção de conhecimento, saber e informação deve ser uma finalidade em si mesma. O que distingue a atividade científica é justamente a produção de conhecimento que não se sabe para que serve, ou que produtos, processos ou inovações podem com ele ser desenvolvidos. Como referia Abraham Flexner, que fundou e presidiu ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton, num célebre ensaio sobre a utilidade do conhecimento inútil ("The usefulness of useless knowledge"), publicado em 1939, "em toda a história da ciência a maior parte das grandes descobertas, que depois se revelariam benéficas para a Humanidade [foram] feitas por homens e mulheres motivados não pelo desejo de serem úteis, mas simplesmente pelo desejo de satisfazer a sua curiosidade". Por isso, prosseguia, as "instituições de ensino deviam dedicar-se à educação da curiosidade".
3. Claro que é útil a criação de pontes entre produção científica, inovação e economia. De pontes, não de aterros. A produção científica deve ser alimentada pela curiosidade, ainda que essa curiosidade possa ter origens diversas: dilemas teóricos, observações banais no quotidiano, mas também problemas concretos, tecnológicos ou sociais. Ou, ainda, a curiosidade de quem aprende. Por isso as ligações entre investigação e ensino são importantes. Como é útil a existência de pontes entre ciência e economia que estimulem a inovação a partir das descobertas feitas para responder à curiosidade. Mas é uma armadilha, que conduz ao desperdício de recursos sem garantia de retorno científico ou económico, a exigência de que a ciência seja, por princípio, aplicada, útil e rendível.
4. Preservar o bom princípio da utilidade do conhecimento inútil é, para todos, uma escolha melhor.

