O anarquismo contemporâneo, maduro nos seus modos, distante do traço de confronto que o pôde haver popularizado décadas atrás, detém a ansiedade pela mais bela das utopias: a da consideração de todos os cidadãos para o alcance do consenso.
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Socialmente, nada mais decente de se desejar, nada mais respeitador da dignidade de cada um, isso que traduzirá a possível igualdade, a possível liberdade. Uma participação igualitária na decisão, desde logo por haver uma discussão elucidativa que informe cada espírito da verdade, da benignidade ou malignidade de cada assunto, seria metodologia para uma opinião concertada até à maravilha do consenso. O único entrave que coloco neste propósito é o de pensar que ser-se pessoa não se vocaciona ao consenso. Isso é, como dizia, uma utopia.
Pondero há anos acerca da oposição natural, uma diferença essencial que nos antagoniza com outras pessoas. Minha convicção humanista é a de que se torna fundamental aprender a ser contrário. A aprendizagem de nos opormos, sem que isso nos destitua de dignidade, sem que isso implique destituir os outros de dignidade, é o único progresso possível na discussão continuada em que as decisões haverão de ser tomadas. Quero dizer, a luta pela democracia é a única oportunidade de justiça, que não será exatamente a de todos, mas é vocacionada para ser a de todos. A maioria é uma vocação para a totalidade. Não é realista esperar, na discussão continuada, implicando cada assunto uma harmonização senão por maioria.
O problema que enfrentamos na democracia é mais moral do que ideológico. Pensarmos que o mercado deve ser livre ou mais regulado não é propriamente o que nos preda. O que nos preda passa pela convicção da Direita, desconfiada e avara, de que não temos de partilhar, fazendo assentar a partilha numa vontade esporádica que mais se assemelha à caridade. E passa pelo facto de a Esquerda, esclarecida em relação à legitimidade humana a ser-se acudido, se deitar a um superpoliciamento que escrutina os indivíduos por suas misérias culpando qualquer bem-estar, penalizando todas as conquistas, o que redunda numa desconfiança também.
Enquanto o princípio universal for o da desconfiança, falhamos no esclarecimento de cada um, falhamos na construção da mesma oportunidade para cada um.
Chegou o sexto número da "Flauta de Luz", revista impecavelmente dirigida por Júlio Henriques, onde o anarquismo se expõe séria e profundamente. Imperdíveis os textos acerca dos povos indígenas da América, desde logo, do Brasil. Imperdível o dossier, contendo um valiosíssimo diálogo, com o poeta Keneth White. Para medirmos o medo às tecnologias, ao Antropoceno, ao capitalismo ou ao fascismo crescente, esta revista é sobre acreditar num mundo muito melhor. Tão melhor, enfim, que minha convicção é tornar-se impossível.