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Hoje é dia de eleições, mas é claro que não vou falar das europeias. Concordando ou não com o dia de "reflexão" (e não concordo), respeito o silêncio que o legislador entende como necessário. Com efeito, ao contrário de doença comum e cada vez mais espalhada, olho para a lei como comando, não apenas quando nela me revejo mas também quando a solução do legislador me parece discutível ou até criticável.
Mas, além das europeias, hoje é também dia de eleições na Ucrânia. Menos mal, poder-se-á convir. Vão apesar de tudo realizar-se, embora em circunstâncias a que todos torceríamos o nariz se tudo isto estivesse a acontecer por exemplo num país africano. Olhe, caro leitor, imagine que as próximas eleições em Angola tinham lugar em condições similares às das ucranianas de hoje. Que diríamos, ou - com mais precisão - o que diria a maioria das opiniões publicadas ou dos comentários políticos? Diria que não estávamos perante eleições livres e democráticas. E muitos até lançariam, com ar categórico, tratar-se de uma farsa camuflada em processo eleitoral. Porventura por razões explicáveis, as eleições que acontecem alhures são avaliadas, queiramos ou não, segundo critérios diferenciados: nuns casos, somos tolerantes perante a imperfeição, mesmo que grosseira. Noutros, nem um alfinete nos escapa e somos umas virgens ofendidas à menor beliscadela.
Porque, realmente, as eleições ucranianas vão ocorrer num contexto peculiar.
A Crimeia já se foi e não vejo como possa voltar. Se sempre considerei que a incorporação daquele território na Rússia não era um filme a preto e branco, com os cowboys de um lado e os índios do outro, nem por isso, e contra mim falo, deixo de reconhecer que no que à Crimeia se refere o direito internacional contou pouco. E, dos dois lados da barricada, ninguém fez grande papel.
E quanto ao resto? Quanto ao resto, finge Kiev, finge a União Europeia, finge a Rússia e fingem os Estados Unidos. Em duas palavras: todos fingem e assobiam para o ar dado que, mal por mal, as eleições têm de se fazer. Finge a Rússia, desde logo, quando Vladimir Putin declara que reconhecerá os resultados das eleições na Ucrânia. Fingem a União Europeia e os Estados Unidos, porque consideram crucial que seja virada a página do golpe da Praça Maidan para que o poder que saia das urnas não sofra desse estigma incómodo e desagradável. E finge Kiev, em parte pelas mesmas razões, em parte porque a sua capacidade atual é quase nula, apertado que está num torno entre dois poderes muitíssimo mais poderosos.
Olhando com olhos de ver, o leste da Ucrânia está a ferro e fogo, pelos combates ou escaramuças entre forças militares ucranianas e os paramilitares que, aparentemente, querem a secessão daqueles territórios. Lá vamos sabendo, a conta-gotas, que agora morreram 18 de um lado e que, depois, lá tombaram 20 do outro. Lá vamos sabendo, também, que a intimidação e os territórios sem lei (sujeitos à lei do mais forte) são muitos. E lá vamos sabendo que, de parte a parte, são frequentes, e graves, as violações de direitos humanos. Não se afigura por conseguinte nada famoso o panorama eleitoral, nestas parcelas da Ucrânia onde muitos não querem votar, onde muitos querem mas não vão conseguir e onde alguns querem e vão votar, qualquer que seja o custo e risco que possam estar em causa.
Por mim, imagino em meu proveito uma história. Imagino que haverá pelo menos uma velhota teimosa que, no leste da Ucrânia, vai enfrentar os seus medos. Vai ser uma velhota porque, desculpem-me os homens, nestas coisas costumamos ser mais timoratos. Ora, em Donetsk ou noutro lado qualquer, a nossa velhota vai levantar-se, fazer o que tem a fazer e vai votar, talvez duvidando que o seu gesto tenha efeitos práticos. Mas vai votar, porque quer continuar a ser cidadã. Nem sei se a senhora é pró-Kiev (se calhar não é); e também não sei se é pró-russa. Sei é que não aceita não votar só porque alguns a aterrorizam. Sei, não, imagino, porque isto é uma história.
De todo o modo, hoje vou votar por causa da velhota, e é simples de explicar. Se ela vai ter a coragem de enfrentar o medo, com que direito não enfrentaria eu a inércia ou o fastio?
E agora, calo-me bem caladinho para não ficar sujeito às iras da CNE, essa espécie de ASAE da propaganda que dispara primeiro e pergunta depois.