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Os números não enganam: na maioria dos países desenvolvidos, as desigualdades internas têm vindo a aprofundar-se. Pior, em muitos casos, o nível de vida da base da pirâmide pouco ou nada tem evoluído nas últimas décadas, mesmo quando houve crescimento. Isto nos países ditos desenvolvidos. No Mundo, como um todo, a desigualdade tem diminuído - com os cumprimentos da China, Índia e Brasil, entre outros.
Tema delicado e polémico, as análises da desigualdade reflectem opções políticas e ideológicas o que não desculpa o simplismo de muitas delas. Nos últimos anos, tem havido um crescendo de estudos, mais rigorosos, talvez ditados pela urgência: muitos pressentem que o nível de desigualdade pode estar à beira de se tornar um factor disruptivo do sistema económico e social em que medrou.
Não parece que os portugueses mais instruídos e com maiores rendimentos, que responderam ao inquérito sobre "(I)literacia Social", efectuado no âmbito de um estudo conduzido pela Universidade Católica e o Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano, partilhem dessa perspectiva. Por comparação com os portugueses menos instruídos e com menores rendimentos, são bem menos generosos e solidários e essa tendência acentua-se à medida que subimos na escala. Talvez os outros convivam mais regularmente com os dramas de quem tem pouco, os percebam melhor e se sintam afectados por eles, em especial quando envolvem pessoas muito próximas, quiçá familiares. O desemprego é uma coisa de pobres e que, mesmo assim, não querem trabalhar, parecem pensar os outros. "Desenrasquem-se! O Estado já gasta de mais com eles - é por isso que os impostos são tão altos".
Talvez a caricatura seja excessiva. Podemos olhar para o copo meio cheio: 47% dos que ganham mais de 4 mil euros por mês valorizam a ajuda aos outros e mais de 50% dos titulares de grau superior pensam da mesma forma. Não sei se o estudo fez mais alguma segmentação adicional (alguém que ganha 4 mil euros apenas é rico para o Fisco!): seria interessante saber o que pensam os verdadeiramente ricos. Se a tendência se mantivesse, o resultado seria trágico mas não surpreendente: quantos dos mais ricos e poderosos têm uma actividade de solidariedade social digna desse nome? Nem a eventual baixa generosidade do sistema fiscal é uma justificação aceitável.
O crescimento pode ajudar a minorar os problemas dos menos favorecidos. Pode. Não é certo que tal ocorra: nas últimas décadas, o crescimento foi um comboio que os mais pobres se limitaram a ver passar. Há quem, hoje, defenda que a redução da desigualdade pode, ela própria, ser um motor para o crescimento, um argumento que ainda carece de suporte empírico: os resultados dos estudos estão longe de ser conclusivos. Vale a pena tentar saber mais para distinguir entre correlação e causalidade. Tal como vale a pena investir em estudar o impacto sobre o crescimento de políticas como o salário mínimo ou o reforço da rede social ou o aumento da progressividade nos impostos ou a opção por sistemas de tributação que libertem as funções produtivas. E, em função das conclusões, ir pensando em alternativas, mesmo que pareçam, à primeira vista, desasadas. Por exemplo, evitar a rigidez das remunerações, não poucas vezes causa de desemprego na fase baixa do ciclo, promovendo a generalização de uma componente variável que, no limite, se traduzisse numa presença no capital das empresas.
Há razões essenciais para que as marcadas desigualdades nos preocupem. Essas razões têm as suas raízes naquilo que poderíamos apelidar de "contrato social" subjacente à nossa sociedade, um contrato fundamentado numa noção básica de justiça e de dignidade que considera o direito ao trabalho e a uma remuneração condigna direitos fundamentais dos trabalhadores. Ignorar e desprezar estes princípios acabará por conduzir a perturbações sociais. Mesmo que não saibamos se a menor desigualdade causa o crescimento, os custos da desordem são conhecidos. Se não forem os valores fundamentais a motivá-los talvez os mais ricos sejam sensíveis a estes outros valores, aos seus interesses. É o que temos...
O autor escreve segundo a antiga ortografia