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Conheci o Henri no RER - Metro Rápido que une o Arco do Triunfo a Saint Germain em Laye. Era um fim de tarde quente de julho e eu lá ia do final de jornada do Hospital em Montparnasse até perto de Nanterre, para ir visitar o meu garagista "intelectual", com quem batia umas bolas de literatura, pintura e vida, uma vez por semana. Era uma das rotinas do fim de tarde das sextas-feiras pré-weekend afrancesado.
Enorme criatura humana o meu amigo Baganha, que ainda hoje muito admiro, e que, entretanto, se tornou num qualificadíssimo galerista autodidata da minha cidade do Porto. Com as suas conversas práticas e sábias tirava-me da aridez de um quotidiano de estéril cientificidade.
Mas voltemos ao Henri, com os seus jeans cuidados, sandálias abertas - de marca -, camisa branca, imaculadamente alva, daquelas que as nossas máquinas de lavar só dão direito a uma semana de brancura igual, largueirona, amarrotada, aberta até meio do peito.
Estava no lote avançado do jovem intelectual, que havia trocado o Café de la Flore pelo Marrais e o Maio de 68 por tudo que mexesse a leste de Berlim.
Refratário ao bulício pseudoexistencialista do mumificado "quartier latin", copiava o visual de Bernard Henry Levy e aspirava à companhia da bonomia seráfica de uma qualquer Arielle Dombasle. Nova época, novo arquétipo. Até na América se evoluía da Janis Joplin para Madona.
Henry era a reincarnação do Tocheville americanizado, de há dois séculos.
Com o comboio vazio após a estação da Défense, só nos restava conversar. Apresentou-se como estudante de Direito em ano sabático, em que colaborava em "curso prático acelerado" com a gestão de uma fábrica de camisas do seu pai, abastado empresário da Bretanha - cheirava-me a ano de castigo de menino rico.
Convenceu-me a ir até ao fim da linha, até aquela espécie de Sintra da Grande Paris.
Dada uma imediata e inexplicável empatia, esqueci o Baganha e eram quatro da madrugada e ainda comentávamos como se contemporizava a ética gaullista com os roubos de estatuetas de Malraux no Camboja e a "fábrica de abortos" clandestina, que esse herói da República do General Pai da Pátria havia montado numa cave do seu apartamento da "Cité". Nessa altura, já acompanhados de um generoso bordéus e queijo para todas as medidas, já usufruíamos também da companhia da sua "copine", uma Dombasle ainda a atirar para o sartriano, mas ainda assim uma lindíssima e cultíssima mulher.
Nasceu ali um amor para a vida. Durante semanas, Henri e ou a Corine iam almoçar comigo uns "oeufs dur maionese" ao bistrot fronteiro à minha estação de Falguière e uma noite por semana eu abancava no chalet sobreaquecido de Saint Germain.
Alguns domingos fomos fazer piqueniques com a trupe que entretanto fui conhecendo, até Fontainebleau, quais Astérix fora de época.
Todos me foram apresentados como filhos de gente rica, ociosa, com curso por terminar, a colaborar em negócios de família. Paradoxalmente, todos me pareciam demasiado cultos, civilizados e afastados da etiqueta de novo-riquismo que traziam.
Henri tinha um ar débil, mas que eu achava ser o ar normalizado de todo o intelectual terreno, nomeadamente parisiense.
Só uns seis meses depois me preocupei com a sua saúde, quando uma noite, a meio de uma patuscada no Lapin Agile - um dos últimos locais piafianos em Montmartre, fui dar com ele na toilette a sangrar copiosamente do nariz. Ajudei-o, meti-o num táxi e levei-o a casa. Ainda passei pela casa de Corine, que veio fazer-lhe companhia enquanto eu rumava a Clamart.
Três meses depois, após um definhamento atroz, Henri morria no hospital judeu de Neully. Foi dos primeiros doentes que vi morrer de sida, naquela época. Tinha sido contaminado meia dúzia de anos antes numa missão humanitária na Costa do Marfim.
Só uma semana antes do seu desaparecimento soube a sua verdadeira identidade. Era um dos discípulos diletos de Nureyev, então diretor artístico da Ópera de Paris. O resto do bando eram todos jovens promissores profissionais da companhia.
Tinham-me adotado e eu adotei-os a eles. Parecíamos alliens de planetas diferentes, mas coexistindo em equilíbrio numa estranha "thin red line".
No dia do seu funeral, em Nanterre, Corine deu-me um manuscrito escrito por ele uma semana antes. Um guardanapo de bistrot! Dizia: "...obrigado, foste o melhor dos piores amigos. Porque foste diferente e o último. Terias dado um grande coreógrafo!..."
Guardo-o com delevo junto das minhas mais nobres peças curriculares.
No funeral conheci o pai. O tal "industrial", que era só um bailarino reformado do Bolshoi que fazia grandes economias para o filho singrar perto de um grande mestre. A partir daí cada um dos meus concidadãos mais reservados e queridos é um potencial Henri.
Para mim, a mentira e a verdade deixaram de estar em exclusivo na hipocrisia ou na conveniência da palavra, mas muito mais no interior do nosso coração e na forma como ele comunica sabiamente connosco e com quem nos rodeia. Nunca enganando.
Era bom que muitos dos nossos políticos e líderes de comunidade passassem por estes cursos práticos de vida.
E terá de ser assim que teremos que passar a aferir muito mais das suas verdadeiras intenções. Para julgarmos com justiça.