O presidente da República completa hoje o primeiro ano do seu segundo mandato como mais alto magistrado da Nação. Fá-lo sem grandes razões para festejos. Se mirar o país a partir da janela da sua casa na famosa Travessa do Possolo, Cavaco Silva verá como os indígenas estão tristes, enrugados, desconfiados, incomodados, ensimesmados, temerosos e receosos com o presente e com o futuro. Verá, enfim, um Portugal que desconfia de si próprio e que não alcança razões para confiar num amanhã que cante.
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Acresce que, para infelicidade e preocupação do chefe de Estado, não está hoje no Governo gente da sua confiança, o que torna a negritude da situação ainda mais acentuada. Pedro Passos Coelho representa tudo aquilo que Cavaco detesta na política, a começar pelo facto de ser um político de carreira: começou na JSD, foi deputado, fez vários percursos da carne assada, rodeou-se de aparatchiks que controlam o partido e soube esperar, pacientemente, pelo se tempo. Quer dizer: se Cavaco pudesse substituir-se ao eleitorado, jamais escolheria Passos Coelho para primeiro-ministro.
As diferenças entre os dois têm, de resto e sem surpresa, vindo em crescendo. Jogado com o lento esboroar do PS, esta circunstâncias transformaram Cavaco no verdadeiro líder da Oposição.
A prova faz-se com factos.
À maneira de Jorge Sampaio, o chefe de Estado cedo lembrou ao Governo que há mais vida para além do défice. No discurso do 5 de Outubro de 2011, avisou: sem crescimento, não saímos daqui.
Já antes, em Março, o presidente avisara o jovem Pedro, perante a avalanche de medidas restritivas (corte nos subsídios de férias e Natal, sobretudo), que há limites para os sacrifícios - "e em alguns casos esses limites podem já ter sido ultrapassados" (sic). Esta versão de Cavaco "provedor do povo" irritou o Governo.
Na concertação social, Cavaco fez de tudo para que o Executivo abandonasse a meia-hora de trabalho a mais. Conseguiu.
Na Europa, as posições do Governo e do chefe de Estado não podiam ser mais contrastantes. Perante o desnorte dos líderes europeus e as graves consequências que isso acarreta para a União Europeia, Passos Coelho cala e Cavaco fala.
Está claro: este estado de coisas tende a agravar-se. Se a execução orçamental correr mal, se o Governo acrescentar mais sacrifícios à lista dos já pedidos, se ninguém no Parlamento fizer o contra-ponto que a democracia reclama, se questões como a nomeação de boys conhecerem novos e picantes episódios, é evidente que chegará um dia em que a tensão entre presidente e Governo atingirá o limite do aceitável.
Esta afiada faca tem dois gumes que, para que ninguém se corte, exige muito equilíbrio político e bom-senso. A ausência de uma verdadeira (e construtiva) Oposição coloca Cavaco no meio de uma fragilíssima ponte. Não é um bom sítio para se estar...