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Este agnóstico lê religiosamente a prosa do Anselmo Borges. No seu último artigo abordou um naco da minha. Além das informações sobre a Old Lives Matter, mencionou duas perguntas: "Estaremos condenados a olhar com angústia o tempo suplementar de que dispomos, oferecido pela ciência e por estilos de vida mais saudáveis? Não apenas pelos achaques normais da idade, mas por força de uma sociedade que recusa a cidadania plena a gentes cujas rugas invadem a pele e, por vezes, dramaticamente!, os neurónios, mas não o coração"?
Exprimindo apoio ao que considerou um apelo à solidariedade, mostrou-se perplexo - porquê o silêncio sobre o debate parlamentar da eutanásia, "afinal não importam as vidas de todos?". E afirmou que o Parlamento não tem legitimidade ética e moral para legislar e seria vergonhoso ignorar um pedido de referendo com mais de 95 mil assinaturas.
Sempre defendi a discussão alargada e carimbo com um "amén" inequívoco a importância das vidas de todos. Em contrapartida, não vejo problema em legislar e não me parece curial referendar um tema destes. (Opinião, aliás, partilhada por alguns que agora o preconizam).
Da mesma frase, levantamos voo em direcções diferentes, mas não adversárias. O Anselmo argumentou que uma lei permitindo a eutanásia em determinadas situações é inaceitável. "All Lives Matter: todas as vidas são importantes, valem", escreveu ele.
Registo que falou das vidas de pessoas e não de uma entidade abstracta e desencarnada, a Vida, que nos habita por empréstimo divino e cuja existência não temos o direito de influenciar. Ora as vidas reais, num quadro de cidadania plena, são como os dias - nascem, vivem e morrem. Se na Natureza existe uma harmonia só maculada pela intervenção humana, nos nossos caminhos não é fácil preservar um fio condutor; uma coerência reconfortante. E alguns acham que certos crepúsculos comprometem a luz interior que lhes pintou a caminhada e decidem adormecer vivos mais cedo. Para não sobreviverem mortos por dentro.
A decisão é sua e não obriga a cumplicidades, não decorre de doença mental ou da falta de apoio familiar ou profissional (é imperiosa a possibilidade de cuidados paliativos para todos). Tripeiro, diria que ambicionam ver o sol mergulhar no horizonte da Foz numa inteireza digna e não num naufrágio. Indolor, mas sofrido em termos de identidade.
Eu e o Anselmo discordamos em paz. Por sermos amigos? Também. Mas a verdadeira razão é anterior à amizade - o respeito mútuo entre cidadãos que discutem de boa-fé e prezam a sagrada escuta do interlocutor. Desejo que isso aconteça no futuro próximo deste país, receio que não seja o caso. Anseio pelo alívio de verificar injustificado o meu pessimismo.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
*Psiquiatra