Os portugueses são um povo calmo. Precisam de ser pisados e repisados para ponderarem entreabrir os lábios e reclamar. Há aqui toda uma história de medo que retrai e imobiliza. As estatísticas vêm agora mostrar que nunca os portugueses reclamaram tanto. Como é evidente, nada dizem da percepção que existe de que numerosas queixas terão tido como gatilho não exclusivamente a pessoa ou entidade visada mas o sufoco e a exaustão a que têm sido submetidos; nunca como nos últimos sete anos, a violência sobre profissionais de saúde foi tão elevada; a percentagem de trabalhadores em "burnout" duplicou em seis anos; as agressões a assistentes sociais aumentaram, como aumentaram as taxas de violência doméstica, suicídio, divórcio e consumo de estupefacientes. Ao invés da Grécia, a violência não alastra nas ruas mas sobeja entre quatro paredes. Envergonhada.
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Na rua, porém, os portugueses revelam-se criativos na hora de reclamar: enfermeiros vendem doces à porta do Ministério contestando o despedimento de colegas do Centro Hospitalar do Oeste; agricultores do Douro pagam com batatas, couves e um coelho (!) a prestação mensal à Segurança Social de Vila Real; docentes licenciados na Universidade do Minho devolvem diplomas de curso (solicitando a restituição das propinas) em protesto contra a prova que desautoriza a sua formação universitária. Há tempos, um grupo de cidadãos voltou costas aos deputados no hemiciclo, em absoluto silêncio e Ferro Rodrigues demorou longos minutos a perceber que o protesto era aquilo, que o silêncio era o protesto, uma não-voz que exprime (metaforicamente) a mordaça.
A verdade é que os portugueses não se revêm nos partidos e estão cada vez mais desiludidos com a qualidade da democracia, em parte devido ao modo como estes se transformaram em agências de emprego, geradoras de carreiras, ao arrepio da universidade. Como pode um contribuinte acreditar nos políticos se a corrupção, o favor e o despesismo abundam, numa despudorada impunidade expressa na dança das cadeiras com que ex-ministros se sucedem na gestão de empresas públicas? Se recordarmos a Proclamação do Movimento das Forças Armadas - "considerando o crescente clima de total afastamento dos portugueses em relação às responsabilidades políticas que lhes cabem como cidadãos, em crescente desenvolvimento de uma tutela de que resulta constante apelo a deveres com paralela denegação de direitos; considerando a necessidade de sanear as instituições, eliminando do nosso sistema de vida todas as ilegitimidades que o abuso do poder tem vindo a legalizar" - é, no mínimo, curioso que pelo menos dois dos quatro "considerandos" que levaram ao 25 de Abril, ainda estejam, 40 anos depois, por cumprir.
Vamos ser claros: não temos tido altruísmo político em abundância face aos sacrifícios que se exigem aos portugueses. A isto, os cidadãos resistem com ironia: é evidente que os bens que os agricultores entregaram lhes faziam falta (como o pão que Deu-la-Deu atirou, no cerco de Monção, lhe fazia falta) mas a sua entrega (na escassez) desconcerta o poder e esse gesto é, paradoxalmente, a vitória; quando os enfermeiros vendem bolos em vez de ministrar medicação estão somente a enfatizar quão vergonhoso é o vencimento com que o Ministério lhes recompensa o curso Superior que tiraram. A ironia pertence ao direito à indignação de que falava Jorge Sampaio, ao inconformismo de Galileu que, tendo de afirmar ante o poder que a Terra não se movia, terá rematado em surdina: "E, no entanto, move-se!".
Talvez os políticos percebessem melhor a sua missão se retivessem a lição das cegonhas da A25, em Cacia (Aveiro). Os responsáveis transferiram 20 ninhos dos pórticos da auto-estrada para estruturas nas imediações, apenas para escassos dias depois assistirem à reconstrução dos mesmos, galho a galho, sobre os pórticos originais, ao ponto de reconsiderarem agora alargar a base dos pórticos para que os ninhos não caiam, permitindo às cegonhas manter a escolha de origem. Porque há coisas que têm de ser, como "preceitos não escritos mas imutáveis dos deuses". E devia encher-nos de esperança que a resistência das cegonhas se tenha passado na A25.
Resistência, na A25..., "estão todos a ver onde o autor quer chegar?".
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