O delicioso cheiro a manteiga de cacau com que a minha mãe me untava o corpo é uma das mais vivas recordações que me ficaram tatuadas daqueles tempos alegres e despreocupados em que alugávamos uma barraca (às riscas azuis e brancas) para todo o mês de agosto, na praia da Foz, entre o Molhe e o Homem do Leme.
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Como morávamos na Avenida de Rodrigues de Freitas, junto à Batalha, e não tínhamos carro, íamos de elétrico, uma viagem longa mas divertida, principalmente se conseguíssemos arranjar lugar sentados, pois, apesar de deixarmos muito tralha num saco que ficava à guarda no banheiro, íamos todos os dias carregados com a comida.
Lá em casa garantiram-me sempre que não éramos pobres, antes remediados, mas o nosso remedeio não dava para ir almoçar fora. Durante todo o querido mês de agosto a minha mãe tinha de fazer horas extraordinárias levantando-se ainda mais cedo que o costume para cozinhar o almoço, transportado em marmitas, embrulhadas em folhas do JN da véspera, para manter a comida morna.
Ainda tenho bem presente na memória o sabor e a textura das batatas às rodelas, muitos diferentes quando são comidas quatro horas depois de fritas, mas tenho a dizer que me sabiam pela vida, depois de uma manhã a correr de um lado para o outro e a dar mergulhos do outro lado do paredão, na praia do Molhe.
Uma vez por semana, sabia que podia contar com um momento gourmet, servido em pratos de plástico numa mesa desdobrável e comido com a ajuda de talheres de campismo em cima da mesa desdobrável: o bife enrolado em volta de um ovo cozido.
Na maré baixa, saltávamos com agilidade de rocha em rocha, sem nunca cair, apesar das algas traiçoeiras, em busca de caranguejos e indiferentes a espécies como lapas e percebes que na altura não tinham a cotação que têm hoje - nem nada que se pareça.
Jogar com uma bola de plástico só era opção quando não havia vento a fazer batotice. As bolas de futebol a sério eram um tesouro raro e caro - quem completasse o álbum das Vitórias, incluindo o bacalhau (o animal mais raro desta coleção, feita com o embrulho de rebuçados rascas) tinha direito a uma bola de couro, mas nunca soube de ninguém que tivesse acabado a caderneta
O grande divertimento era disputar, em pistas desenhadas na areia, com prémio da montanha e tudo, a Volta a Portugal em sameiras (não lhes chamávamos caricas), personalizadas com pequenos pedaços de papel colorido no seu interior, com o nome e as cores dos ciclistas (Mário Silva e Joaquim Leão, duas glórias do F. C. Porto, eram os meus preferidos).
Também jogávamos ao prego, nas duas versões - a portuguesa e a espanhola -, à sueca e à bisca, naqueles anos 60 em que passamos da infância à adolescência a ouvir na rádio os "Óculos de sol", da Natércia Barreto, o "In the Summertime", dos Mungo Jerry, e o "Lola", dos Kinks.
Envergonhado por vos ter incomodado com a evocação dos meus bons velhos tempos, disfarcei-me com uma fotografia minha da época. Despeço-me com amizade, garantindo que procurarei não vos maçar nas duas próximas semanas - e apenas me pus a desfiar estas recordações por um motivo de força maior.