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Ainda que estejamos sentados e protegidos pela distância e pelo ecrã, não é possível ver aquilo e ficar indiferente - desarticula a alma, provoca feridas nos flancos do medo e do espanto, deixa lanhos vivos em todo o corpo da mente: a muralha de pavor em que imaginamos ver labaredas de crianças, homens e mulheres vivas com a carne e os ossos a arder.
Aquilo, como uma alucinação de História que se reergue lívida no nosso presente, e nos obriga a olhar - e, depois de olhar, a ver -, é “A zona de interesse”, filme do britânico, e judeu, Jonathan Glazer que ganhou dois Oscars (melhor filme internacional e melhor som) e que é a mais desafiadora, e mais chocante, peça de arte audiovisual que vimos em muitos anos.
A história é de uma horrível banalidade: mostra-nos a vida doméstica do comandante de campo de Auschwitz, Rudolf Hoss, e da sua mulher, Hedwig Hensel, e dos seus esforços para construírem uma vida de sonho para a família de cinco filhos numa casa com jardim, malmequeres, girassóis, rosas e hibiscos, que será o sonho lícito de qualquer família, mas que neste caso é uma casa que fica contígua, exatamente colada, ao ignominioso campo de extermínio de judeus durante a II Guerra.
Como um arraial de trevas, o filme - é mais do que um filme; é uma instalação zoológica que pretende exibir-nos um frio maior, o frio reduto do cúmulo da malignidade humana que é a absoluta indiferença daquela gente - infunde-se no espectador e fica a ressoar dentro dele. Muito desse poderoso efeito deve-se ao dispositivo narrativo: Jonathan Glazer nunca nos dá a ver um segundo que seja daquilo que se passa dentro do campo do Holocausto; põe-nos antes a ouvir os sons que se esvaem lá de dentro - e os sons, que são de gritos, tiros e gemidos monstruosos permanentemente a rosnar, são excruciantes, devoram qualquer coração.
Agora imaginemos isto: imaginemos que o campo de extermínio é Gaza, que ali não estão judeus mas palestinianos, e que o jardim da banalidade do mal que estamos a contemplar, passivos, é a nação de Israel conduzida por Benjamin “Bibi” Netanyahu.
Ao receber o Oscar, Jonathan Glazer, que logo no dia seguinte foi acusado, na forma duma carta aberta subscrita por mais de mil personalidades de Hollywood, de “dar credibilidade ao moderno libelo de sangue que alimenta um crescente ódio antijudaico em todo o Mundo”, não falou de História; falou da violência contínua no Médio Oriente de hoje.
“Todas as nossas decisões foram tomadas para refletir e confrontar o presente, não para dizer ‘vejam o que eles fizeram!’, mas sim ‘vejam o que estamos a fazer hoje!’. O nosso filme mostra aonde a desumanização nos está a levar”, disse o Glazer no palco, ladeado pelos seus produtores. “Neste momento, estamos aqui como homens que recusam que o seu judaísmo e o Holocausto sejam sequestrados por uma ocupação que levou tantas pessoas inocentes ao conflito, sejam elas as vítimas do 7 de outubro em Israel ou o ataque que está em curso em Gaza”.