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Há dez anos, morria o escritor, ensaísta e polemista Gore Vidal. Pertence àquele grupo restrito de grandes figuras que não deixam epígonos. Ele, pelo contrário, sentia-se (e em certo sentido era) "descendente" dos "founding fathers" dos Estados Unidos. "Criou-se", por assim dizer, com o avô senador, cego, Gore, com quem, e a quem, lia praticamente tudo. Era um "liberal" radical, o que, na nossa língua-de-trapos, significa ser de Esquerda. Privou com o "meio" político e intelectual, de Washington a Nova Iorque, mas viajou muito pela Europa, acabando por residir em Itália anos a fio. A Europa serviu-lhe, aliás, de grande inspiração para aquilo que considero melhor nele, o ensaio. Pouca gente escreveu melhor do que Vidal sobre Montaigne ou Calvino, por exemplo. Ou sobre o Suetónio dos "Doze Césares", onde aproveitou para discorrer sobre a sexualidade humana sem o menor tabu ou as idiotices nossas coevas. Estreou-se nos livros, aos vinte e poucos, com o magnífico "The City and the Pillar". E escreveu, em várias obras de ficção de valor desigual, a "história" dos EUA. Passou por cá em Maio de 1998, na Gulbenkian, onde proferiu uma "lecture" que adaptou ao auditório. Intitulada "Caos", começara por ser lida em Oxford, em 1995. Fixou-a em dois livros posteriores. Aproximava-se um novo século e Gore socorreu-se de Vico, Platão, H. Bloom e Chapman para nos dar uma explicação do Mundo que permanece válida. A história da humanidade não tem necessariamente uma "ordem" ou um método, e isso não será obrigatoriamente mau. Pelo contrário, é uma constante de "fases" ou "eras" que se vão repetindo. Primeiro, a fase teocrática, a que se segue a aristocrática e depois a democrática - que degenera no caos do qual brotará uma nova ideia ou "divindade" (mesmo pagã), e voltamos ao início do ciclo. E assim sucessivamente. O que caracteriza a degenerescência da "era" democrática", e, logo, do caos é a emergência do indivíduo, o grande desafiador das duas primeiras "eras". Por outro lado, surgem as grandes deslocações de massas ("tribos") a que ele ainda não chama globalização. Por consequência, uma maior secularização do Mundo, antes cristão, e uma maior prevalência de "forças centrípetas" sobre as "centrífugas" do individualismo. Vidal escreve que "a Europa ocidental já foi o mais longe que podia ir no sentido da unificação". Em 2022, o que é que ele diria desta destravada UE, ou da NATO, ele que adianta nunca ter vivido em democracia em lado algum? Se estávamos na era do caos no final do século passado, esta segunda década do século XXI enfiou-nos noutro sem desfecho à vista. Abençoado caos.
*Jurista
o autor escreve segundo a antiga ortografia