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Apolítica externa das principais potências não costuma trazer grandes surpresas. O peso dos interesses, estratégicos ou outros, que define o rumo dos países na ordem internacional raramente é abalado de forma radical. Episódios de conjuntura podem determinar correções de percurso, mas o essencial permanece, numa lógica de "ciclos longos".
A subida ao poder de Donald Trump indiciou, numa leitura imediata, uma possível rutura com o quadro tradicional da ação externa dos Estados Unidos. Um punhado de bravatas, que roçavam a irresponsabilidade, haviam sido adiantadas durante a campanha e, com naturalidade, os aliados dos EUA preocuparam-se.
A América não é um país qualquer, é a maior potência mundial, sendo, desde há décadas, o principal "produtor de segurança" para quantos se revêm na ordem demoliberal ocidental. Ao falar da Rússia e da NATO como começou por falar, Trump fez disparar o "alerta vermelho" nos aliados que tinham Washington como uma constante segura nesse domínio. Mas, por si próprios, pouco podiam fazer, restando-lhes esperar que o peso da realidade e os "checks-and-balances" da democracia americana funcionassem.
Trump construiu uma administração "business oriented", ou seja, determinada nas suas opções pelos negócios e interesses económicos. Levou para a Casa Branca a agenda simplista de que os EUA vinham de décadas de ingenuidade no plano externo e que era importante corrigir essa "injustiça", que impactava no orçamento de Washington e nas contas externas do país, deixando-o à mercê de outros. Desconfiado do mundo dos tratados multilaterais, Trump optou pelo confronto bilateral musculado - com o México, com a Alemanha (isto é, a Europa que conta), com a China, etc. Em poucas semanas, terá feito, contudo, um curso intensivo de realismo.
Há um mundo de dificuldades na política que não se compadece com a ligeireza impressionista do voluntarismo arrogante. E há muitos interesses a ter em conta.
A Rússia terá sido, porventura, a maior lição. Por razões que só o tempo explicará, Trump alimentou a ilusão de que o país derrotado e humilhado pelos EUA, no termo da Guerra Fria, ia poder converter-se num dócil aliado, quiçá passível de ser subcontratado para tarefas de interesse comum, em áreas onde os americanos pretendessem "desengajar" militarmente no futuro.
Em algumas semanas, os poderes fáticos - militares, económicos e outros - dentro dos EUA encarregaram-se de baralhar os cenários de reversão estratégica do novel presidente. E aí está Trump em rota de colisão com Moscovo, com a NATO a deixar de ser obsoleta para passar a indispensável.
Nem tudo estará exatamente como dantes, mas, neste domínio, o quartel-general já estará a regressar a Abrantes.
* EMBAIXADOR