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A meu Pai.
A voz de meu Pai, entre a esperança e o receio, "será desta?". Os Machados eram do contra, educados por velhos republicanos, vira-os chorar de alegria na vinda de Humberto Delgado ao Porto; o mar de gente nos Aliados convencera-os de que a vitória era possível, o desejo enevoa a razão. O meu Bisavô no exílio, só autorizado a regressar para morrer; outros provando a hospitalidade da PIDE; a carreira académica de meu Pai "congelada" durante anos; um povo adiado e oprimido, não admira que os Machados confiassem mais na BBC do que na Emissora Nacional. "Será desta?". Foi. Recordo abraço comovido, olhos húmidos e frase nostálgica, "o seu Avô Ângelo morreu à espera deste dia".
Eu ainda clínico geral, fazendo domicílios. De um momento para o outro pequenas casas abrigavam grandes famílias, centenas de milhares de portugueses regressavam (quase) sem nada. Assisti a provas de uma solidariedade comovente e ouvi relatos de cruel desprezo. Alguma Esquerda apodava de colonialista gente que trabalhara uma vida inteira e se via nua de futuro, enquanto os grandes interesses já o tinham acautelado. Pessoas morrendo de saudades do Mundo que sempre conheceram; do seu país. Nortenho, ouvi relatos sobre um sol fiel e espaços amplos; espantado, percebi que muitas mulheres eram oprimidas por olhares sociais mais castradores do que os africanos; envergonhado, observei situações que justificavam lamento frequente, "tratam-nos como portugueses de segunda". Muitos sentiam-se traídos e o ressentimento dura até hoje.
Já psiquiatra, tropecei nos que apresentavam comportamentos incompreensíveis para eles e os outros, da irritabilidade ao isolamento, ao barulho de um escape vi um amigo mergulhar no chão de cimento. Terão chegado aos 140 mil os ex-combatentes que sofriam de stress pós-traumático. Esperaram mais de 20 anos por apoio especializado, muito pelo esforço do meu colega Afonso de Albuquerque, incansável na luta por essa causa.
Os que lá morreram. Uns batendo-se pelo Portugal Ultramarino, outros amaldiçoando a guerra colonial a que se opunham. Todos eram gente nossa, que partiu na flor da idade, flor que não murcha nos vasos da memória de quem ama.
Abris, sim. Quase 50 anos volvidos ainda há temas tabu, rostos fechados; feridas que não cicatrizaram. Seria hipócrita negar que as memórias mais gratas são a alegria comovida de meu Pai, as ruas festejando a liberdade, cravos "pacificando" espingardas. Mas não esqueço outras lágrimas. Gedeão ensinou-nos que todas são feitas de "água (quase tudo) e cloreto de sódio". Pois bem, os que as choravam também eram e são portugueses.
Doridos.
Psiquiatra
o autor escreve segundo a antiga ortografia