Abuso de crianças
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A elaboração de um "registo nacional de abusadores de menores" foi objeto de cuidadoso tratamento jornalístico na última edição do semanário "Expresso" e abordada pela Comunicação Social do passado fim de semana. Trata-se ainda de uma iniciativa em estudo no Ministério da Justiça que deverá estar concluída até ao final deste ano, e que surge no quadro da transposição para a ordem jurídica interna de uma diretiva da União Europeia aprovada em dezembro de 2011. A reincidência nos crimes de abuso de menores está objetivamente documentada. Cabe ao "Estado de Direito", fundado sobre o respeito pela dignidade humana, o dever de proteção de todos os cidadãos em geral e, muito particularmente, daqueles que por se encontrarem numa situação de maior vulnerabilidade carecem de especial atenção e cuidado, como acontece com as crianças. Se grande parte dos condenados por pedofilia volta a praticar o mesmo crime quando sai da prisão, as autoridades públicas têm a obrigação de averiguar as respetivas causas e de adotar as medidas pertinentes para poupar os menores a perigos evitáveis. Em princípio, só podemos considerar como positivas, quer a diretiva europeia quer a preocupação manifestada pela ministra da Justiça.
Começando pelas causas, é certo que a cartografia social dos condenados por abuso sexual de menores indicia a existência de múltiplos fatores, desde os condicionamentos económicos às determinantes culturais e à compulsão psicológica. A exclusão social e as formas de marginalidade associadas ao mundo do crime, naturalmente, estão também aqui presentes e não deixarão de ser relevantes para o sucesso ou o fracasso das medidas de ressocialização e reinserção, contudo, a atuação no meio penitenciário é crucial. O "Programa de Intervenção Dirigido a Agressores Sexuais" criado em 2009, a título experimental, pela Direção-Geral dos Serviços Prisionais, carece de urgente reavaliação. Como explica o seu mentor, Rui Abrunhosa Gonçalves, da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, o facto de a adesão ao programa ser voluntária limita drasticamente as finalidades a alcançar. Em consequência disso, a esmagadora maioria dos reclusos a cumprir pena por agressão sexual recusa ou abandona o tratamento e continua a sair em liberdade sem nunca ter passado por qualquer programa de prevenção da reincidência. E além de absurdo, só por cinismo ou distração se pode rejeitar liminarmente a imposição da frequência de um programa de prevenção, em nome do respeito pela vontade dos reclusos, ao mesmo tempo que se admite a imposição de um "rótulo infamante", para toda a vida, aos condenados que já saldaram as suas contas com a justiça, por temor de hipotéticas "recaídas".
A criação de um registo nacional com o perfil dos autores de crimes de abuso de crianças, com a sua identificação e residência, pode ser um instrumento de prevenção legítimo se respeitar os fins, os limites e os requisitos impostos pela lei e pela Constituição relativamente à organização de "bases de dados pessoais". O que é decisivo é a definição das restrições de acesso a um tal ficheiro, a natureza das entidades que o podem autorizar, a adequação dos critérios e a diferenciação dos procedimentos conforme a gravidade da ameaça. O acesso público a tal ficheiro, como acontece em alguns Estados da América do Norte, é inaceitável e, mais que um instrumento de prevenção do crime, depressa se tornaria numa fonte inútil de alarme social. O mesmo se diga da sua difusão pelos conselhos diretivos de escolas e jardins de infância da área de residência do abusador. Nada justifica o envolvimento de outras entidades além das autoridades judiciais e policiais. O imperativo da garantia da proteção das crianças sustenta-se no princípio universal do respeito pela dignidade humana que não poder ser negado ou restringido a qualquer cidadão ou grupo, em termos que o esvaziem de utilidade e o destituam de sentido.