A paz, o desarmamento, a erradicação das armas nucleares soam hoje como arcaísmos na cena internacional. Já nem sequer se lhes reconhece qualquer utilidade retórica!
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Banalizou-se o uso da força e a ingerência externa perante um público anestesiado pela alegada fatalidade de uma globalização cega, comandada pela vontade anónima dos mercados. Os aliados de ontem, na Síria, são cinicamente abandonados no campo de batalha às mãos dos seus predadores. As violações dos Direitos Humanos no Iémen, no Egito ou nas Filipinas são ignoradas. O socorro humanitário urgente, a pedido da oposição venezuelana, ficou rapidamente esquecido logo após o seu fracasso. As impressionantes manifestações pacíficas dos catalães, em defesa dos seus presos políticos, são objeto do mesmo tratamento mediático concedido aos arruaceiros de Hong Kong...
O "New York Times", a propósito do processo de destituição de Donald Trump, sentiu necessidade de explicar, esta semana, a pedido dos leitores, porque é inadmissível a tentativa de manipulação das eleições por parte de um governo estrangeiro... questão que o atual presidente dos EUA parece nunca ter compreendido.
De facto, a desordem internacional reinante começou no interior das democracias. Os primeiros sinais de crise das instituições democráticas não são recentes. É indispensável evocar o seu contexto histórico inscrito no Mundo ocidental, há 40 anos, por Reagan e Thatcher, aos quais logo se iriam associar os arautos da terceira via social-democrata, Blair e Clinton. Por esse "pacto infernal" ("Viagens na minha terra", Almeida Garrett, 1843) foi minguando o contraditório no debate público, dissipou-se a política enquanto exercício de confrontação cívica e apagou-se a esperança do povo soberano. A queda do império soviético, em 1989, serviu de demonstração e poderoso amplificador do pretenso fracasso das ideias socialistas e das aspirações de justiça e de decência ética indissociáveis da ação política e da própria democracia. Por fim, o atentado terrorista contra as torres gémeas de Nova Iorque iria servir de pretexto - pela indignação legítima que suscitou! - para justificar essa viragem crucial em nome da "guerra ao terror" declarada, em 2001, por George W. Bush.
A decência e a justiça foram gradualmente suplantadas na escala dos valores cívicos pela segurança e pela simpatia. Perante a ausência de propostas alternativas, o medo sobrepõe-se ao confronto de ideias, à ponderação dos argumentos, à verdade dos factos. Em contraciclo, a legislatura que agora finda não se resignou à mera gestão da dependência externa. Afirmar o primado da política não é um desafio menor. É a missão que temos pela frente.
Deputado e professor de Direito Constitucional