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Corria a segunda parte do F. C. Porto-EintrachtFrankfurt. Um jogador alemão fica estendido no relvado. O guarda-redes dos portistas aproxima-se dele e, perante o que vê, chama com veemência a equipa médica germânica que, entretanto, se havia aproximado da linha lateral. Perante o incitamento para a entrada rápida, os alemães, serenos, sinalizam-lhe que aguardam autorização do árbitro. Quando esta, por fim, é dada, e só então, correm rapidamente para assistir o jogador.
Ocorreu-me este episódio a propósito de um estudo sobre a Alemanha. Tida, durante alguns anos, como o doente da Europa é, hoje, a sua locomotiva. Essa alteração é, comummente, atribuída às medidas aprovadas no consulado de Gerhard Schröder, o social-democrata que precedeu Angela Merkel. Mencionam-se, sobretudo, alterações legislativas profundas que teriam permitido a contenção salarial essencial para que o país parasse e invertesse o declínio. Podem-se criticar algumas sequelas (baixos níveis salariais de certas ocupações, aumento da desigualdade e aparecimento de casos de pobreza, mesmo entre os que estão empregados) mas é certo que o desemprego nunca aumentou significativamente. Para além disso, em termos da economia como um todo, a Alemanha é vista como um caso de ajustamento bem-sucedido, reflectido num acréscimo de competitividade internacional e na pujança das suas exportações. Como é que aquelas alterações operaram, na prática? Algo surpreendentemente, análises recentes (http://www.voxeu.org/article/german-resurgence-it-wasn-t-hartz-reforms) apontam a descentralização do processo negocial para um nível próximo da empresa e o forte envolvimento das comissões de trabalhadores como elementos críticos do sucesso. Quer um aspecto, quer outro, são elementos institucionais, enraizados na respectiva cultura das relações laborais. As mudanças na legislação laboral, designadamente no que diz respeito à flexibilização dos despedimentos, pouca influência teriam tido. Como assim? Não foi isso que a troika e o Governo nos têm dito ser fundamental? Os modelos, sobretudo quando muito ligados a culturas e tradições específicas, não são fáceis de transplantar. Ainda assim, há alguns sinais que possam ser lidos como indo na direcção da experiência alemã? O Governo, por exemplo, tem dúvidas que as câmaras municipais possam negociar com os seus trabalhadores as condições do competente horário de trabalho. E quer combater a evasão fiscal sorteando automóveis, de luxo de preferência! Ocorre-me que a descentralização da negociação impõe às empresas contas certas e transparentes. Ou não? Um acto vale mais do que mil palavras. É esta a apregoada reforma de Estado?
Actos. Quotidianos, dos cidadãos. Não sou capaz de dizer, de ciência certa que revelem o que somos ou que o que viremos a ser. Não deixo, ainda assim, de pensar que haverá algum fundo de verdade naqueles que consideram o comportamento do dia-a-dia como um reflexo do mais íntimo de nós. Já nem falo, para não me repetir, no estranho uso dado, entre nós, aos espaços públicos, relvados em particular, apropriados e transformados pelos donos de cães em privadas dos bichos. Falo de outras situações igualmente reveladoras da falta de respeito para com terceiros. O estacionamento selvagem, por exemplo. Ou a paragem sem qualquer consideração do impacto no fluxo de trânsito. Passo, com regularidade, perto de uma escola situada numa rua estreita. Um martírio se coincidir com a hora de entrada ou saída. Os automóveis param de um lado e do outro, ao ponto de impedirem que um autocarro passe e forçando, mesmo o comum automobilista, a autênticas gincanas. Chame-se a Polícia?
Num registo diferente, mas ainda envolvendo escolas, experimente passar perto de uma, dez minutos depois da hora de entrada estabelecida. Verificará que continuam a chegar alunos e alunas, muitos conduzidos por familiares. Num país com um problema crónico de cumprimento de horários (os congressos dos partidos são um excelente exemplo, no mau sentido), que influência estes pequenos rituais terão no resto da vida destes cidadãos?
Falta (do) Estado?