Nunca escondi que Ernesto Hemingway é o meu escritor predileto. Vilipendiado na época em que viveu e durante décadas, em que quase tudo serviu para o denegrir. Desde a crítica ao seu estilo "light", pouco virado para o então passado recente de uma América pobre, deprimida e sofredora, até à sua escrita pretensamente novelesca e romântica, até ao exagero como era relatada a sua intrépida vida pessoal, sonhadoramente aventureira e boémia. Talvez por tudo isso, aprendi a gostar dele, de tal forma que até nas minhas fugidas a Cuba não perco a oportunidade para calcorrear livrarias de rua e vão de escada, e assim apanhar um pequeno depoimento jornalístico, um relato da festa da vila piscatória vizinha à sua casa, ou para adquirir depoimentos mais independentes ou mais oficiais sobre a leitura do significado da sua vivência "Fidelista".
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Praticamente li tudo o que ele escreveu. Com ele aprendi a compreender a identidade da "fiesta" e da sua correlação epidérmica com o nacionalismo basco.
Foi através dele que mergulhei na riqueza intelectual da Paris do entre guerras e do pós-armistício.
Foi ao seu lado que vi, por antecipação de anos, as chitas a caçar de madrugada no sopé do Kilimanjaro, mas foi principalmente através dos seus olhos que entendi o magnífico sentido trágico da vida.
Principalmente a absorção daquela verdade tão determinante e real, que é a de que o homem, como único ser pensante, tem o privilégio de racionalizar o quotidiano, mas também de ser o único a entender que tem a responsabilidade, o desígnio, de viver essa extraordinária aventura de ser o mais solitário de todos os seres vivos.
O livre arbítrio que lhe é emprestado pela natureza (por Deus!?), abre-lhe a possibilidade de mitigar a sua solidão, mas depois acabar sempre por o obrigar a decidir sozinho, em consciência e de forma sempre definitiva.
No "Adeus às armas", romance em que um condutor de ambulâncias americano, ferido, Frederic Henry, se apaixona pela sua enfermeira inglesa, Catherine Barkley, e com ela deserta para a Suíça, atravessando numa noite de nevoeiro o Lago Maggiore, termina com um compêndio de vida. Num só parágrafo. Próprio de um génio sábio da vida.
Catherine, que estava grávida, vê-se hospitalizada de urgência para ter o seu bebé no velho hospital de Locarno.
As horas de espera na antecâmara da sala de partos mimetizavam em tudo a tradição dos momentos que antecedem um primeiro filho, só que aquele, mais querido e desejado, dadas as condições agudas que conduziram à sua apaixonada gestação.
Cigarros, nuvens de fumo, descidas furtivas e rápidas ao bistrot da esquina, perguntas debutantes às enfermeiras e aos médicos, até que num dos retornos do ultimo café sorvido à pressa, Henry choca-se com semblantes chorosos, sofridos e fechados.
Uma hemorragia aguda descontrolada tinha morto criança e mãe naqueles curtos minutos.
Com brusquidão e alguma resistência e até violência física, Frederic consegue expulsar técnicos e outro pessoal de apoio do quarto da sua amada, porque quer ficar só com ela, tentar compreender o seu drama, despedir-se.
Contudo, inopinadamente, e passo a citar: "Depois de as ter posto fora do quarto, de ter fechado a porta e apagado a luz, viu que era inútil. Era como dizer adeus a uma estátua. Passado um momento, saiu, deixou o hospital e voltou ao hotel, debaixo de chuva".
Magnífica e hiperrealista lição de vida dá o escritor aventureiro, neste parágrafo final. Quando toda a gente esperava gritos, carpideiras e descontrolo, após 310 páginas de construção de uma vida prolongada, feliz e ardente, Hemingway faz-nos todos descer ao real. A pique, a frio.
Uma grande lição para todos e para sempre, mas muito para o Portugal e para a Europa política e social de hoje. Vale a pena lutar à exaustão por tudo aquilo em que cremos, todavia, uma vez vislumbrada a impossibilidade prática da sua execução, devemos descer tranquilamente a escada, recolher ao hotel, dormir um bom sono retemperador e ter força para um novo destino mobilizador.
A Europa da abundância e do mirífico Estado social morreu. Há que esquecê-la e construir outra melhor. Mas com as novas gerações, com novos arquétipos, com uma necessária nova ordem internacional, com mais ideal e romantismo e menos cinzentismo e burocracia. E vai ser possível.
O debate europeu que se aproxima poderá ajudar, se for feito com elevação. Na nova Europa tem que voltar a reinar o ideal, uma iniciativa privada forte e independente, um Estado forte e soberano, mas não pode haver lugar parada ganância das multinacionais sem pátria, para o manobrismo financeiro, para uma nomenclatura abastada e que só conhece a primeira classe dos voos intercontinentais.
Uma nova classe dirigente que não se subjugue à fatalidade de obrigar esta geração de europeus a pagar numa só geração as faturas deixadas por criminosos como Mao, Estaline, Pol Pot ou toda a panóplia de ditadores sul-americanos.
Precisamos de uma Europa de Frederic Henry para voltarmos caterva esperança de reencontrar Catherine Barkley.
Uma grande lição para todos e para sempre, mas muito para o Portugal de hoje. Vale a pena lutar até à exaustão por tudo aquilo em que cremos, todavia, uma vez vislumbrada a impossibilidade prática da sua execução, devemos descer tranquilamente a escada, recolher ao hotel, dormir um bom sono temporizador e ter a força para conceptualizar um novo destino mobilizador e recomeçar a lutar por ele.
Esta é uma verdade para o Portugal e para a Europa de hoje. Essa Europa do crescimento impagável e do Estado social generoso morreu. É preciso virar-lhe as costas e construir outra.
A que não quer fazer crescer o Mundo à custa dos interesses das multinacionais que fecundam na China, no Paquistão ou na Indonésia, que não idolatram a robótica em detrimento do homem com emprego e feliz, que acreditam que pode haver saúde e educação quase gratuitas se todos pagarem devidamente os seus impostos e que esta geração de europeus não tem que pagar numa única prestação os erros criminosos de Mao, Estaline ou Pol Pot.
Temos de ser todos um pouco Frederic Henry para podermos almejar a recuperar novas Catherine Barkley.