O presidente da República conseguiu surpreender toda a gente com a sua comunicação ao país na quarta-feira. Nada fazia prever este desfecho. Quando passamos em revista as suas últimas declarações e revisitamos as suas tomadas de posição mais recentes, o espanto que sentimos torna-se ainda mais forte. Ouvimo-lo repetir por diversas vezes que "Portugal não se pode dar ao luxo de uma crise política", sempre considerando a estabilidade como fator essencial para o cumprimento das responsabilidades assumidas perante os credores. E, bem recentemente, no preciso dia em que Vítor Gaspar se demite, quando interpelado sobre a solidez da coligação, reafirma o seu entendimento de que "quem determina a continuação ou não do Governo é a Assembleia da República. Cada força deve fazer o seu trabalho e não esperar que sejam outros a fazê-lo".
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O que terá então suscitado, em tão curto prazo, uma tão forte mudança de opinião por parte do presidente?
Cavaco Silva não é um político inexperiente nem alguém que nos tenha habituado a decisões precipitadas e intempestivas. Foi dez anos primeiro-ministro de Portugal e é só a pessoa que até hoje mais tempo desempenhou esta função depois do 25 de Abril. E está há sete anos como presidente da República. Como admitir, por tudo isto, que seja ele quem vem reacender a crise quando ela parecia ter sido ultrapassada e que seja ele quem vem propor uma solução que não agrada a nenhum dos partidos com assento parlamentar?
Cavaco Silva é, acima de tudo, um político, por mais que ao longo de todo o seu percurso tenha procurado dar ideia do contrário. E a um político não é indiferente verificar que é mal-amado pelos cidadãos, que não é olhado com respeitado pelas instituições, chegando a ser vaiado nas suas aparições públicas. Acresce que não há registo no nosso país de índices de popularidade de um presidente da República tão baixos como os agora verificados, para o que muito parece ter contribuído a excessiva colagem ao Governo de que tem sido ultimamente acusado. Para uma grande parte da opinião pública, o presidente estava a proteger um Governo impreparado, que estava a afundar o país e era, por isso, conivente com ele.
Começando por ser crítico da atuação governativa (é de Cavaco Silva a "expressão espiral recessiva"), foi fazendo sucessivas concessões ao, para si, valor maior da estabilidade, desgastando-se a ritmo semelhante ao do Governo. Com uma diferença que não é de negligenciar. Passos Coelho regista os mais baixos índices de aprovação dos portugueses, enquanto o parceiro de coligação Paulo Portas aparecia como a segunda figura mais popular da República.
Até que um conjunto de acontecimentos de uma leviandade indescritível tudo precipita. A nomeação da ministra das Finanças, a demissão retaliatória do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros sem informação atempada ao presidente, a posse da ministra com a coligação em rotura, a ameaça de saída do Governo dos ministros do CDS, o recuo de Portas que revoga a sua própria decisão. A mais completa irresponsabilidade e a total humilhação do presidente da República. Sempre no pressuposto de que Cavaco Silva a tudo daria assentimento em vista da tão propalada estabilidade.
Mas não foi assim. Ao oitavo dia da crise desencadeada por Paulo Portas, o presidente falou. E disse, sobretudo aos líderes da coligação, que não confia neles e passa a tomar a iniciativa política. Estranhíssimo é que Passos Coelho, que falou três vezes com o presidente antes da sua comunicação ao país e a quem transmitiu a sua proposta de Governo, não se tenha apercebido da posição do PR. Cavaco Silva entala PSD e CDS, condiciona o PS e ignora os outros partidos com representação parlamentar. E faz propostas concretas. Muito concretas. Mas, aparentemente e a meu ver, irrealizáveis no quadro político vigente. Na decisão de Cavaco Silva pesou, sem dúvida, o comportamento afrontoso dos dois líderes e a informação trazida pelos economistas com quem antes se reuniu e que lhe traçaram um quadro muito pouco risonho do nosso futuro. Contudo, ao decidir não marcar já eleições, o risco passou a ser seu.
Por agora, tem o apreço de muitos portugueses. E terá ainda mais se o caminho que preconizou tiver saída. Mas ficará para a história como o responsável pelo agravamento da crise se o que concebeu como alternativa não vier a acontecer.