As imagens televisivas sucederam-se, e talvez por isso o absurdo foi mais evidente.
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Primeiro, um dos homens que resgatara do mar alguns dos 27 cadáveres dos migrantes que não conseguiram chegar ao Reino Unido, através do canal da Mancha. E aquilo que ele disse: "Não é fácil ver tantos corpos a boiar no mar".
E depois a outra imagem, igualmente indigna, dos dois líderes políticos que podem fazer a diferença a apontarem o dedo um ao outro. Macron culpando Boris, Boris culpando Macron. Os 27 mortos de Calais, entre os quais uma mulher grávida e três crianças, afogaram-se também na soberba e indiferença diplomáticas destes dois países.
A tensão venenosa entre Reino Unido e França em torno da forma de suster a crise migratória não é de hoje, mas agravou-se no pós-Brexit. Londres assegura que Paris não faz o suficiente para impedir que os botes insufláveis se lancem no mar gelado, Paris garante que é a facilidade com que se encontra emprego no mercado negro britânico que continua a empurrar milhares na direção do perigo.
Mas enquanto Boris e Macron trocam ameaças políticas, medem forças nas redes sociais e convidam e desconvidam ministros para minicimeiras, o foco esvai-se nas entrelinhas: salvar vidas, em primeiro lugar, e encaminhar as famílias que fogem da fome e da guerra para um refúgio seguro. Ninguém duvida da enorme complexidade em lidar politicamente com uma crise migratória.
Mas a mais recente tragédia de Calais provou que os eleitorados domésticos mandam mais do que os valores básicos da decência e da humanidade. Com o Reino Unido fora da União Europeia tudo se tornou mais doloroso. Londres continua a gerir este turbilhão com duas faces, navegando ao sabor dos interesses momentâneos.
Só que este drama humanitário não se resolve de forma isolada. Apenas em conjunto será possível impedir que Calais se eternize como um cemitério de água salgada que envergonha todos os europeus. Os que estão dentro e os que estão fora.
*Diretor-adjunto