O Governo anunciou recentemente a sua intenção de criar legislação visando punir o vandalismo urbano, nomeadamente as pichagens em paredes e no mobiliário e equipamento públicos, que agridem o espaço e desfeiam as nossas cidades. Como a generalidade dos cidadãos, congratulei-me com este intuito na convicção de que, nestes casos, o que importa é não ignorar um problema cuja visibilidade tem vindo a aumentar. Mas, confesso, fiquei com sérias dúvidas quanto à eficácia de tal legislação até porque, já hoje, tal não é permitido. A intenção do Governo de apertar o cerco parece boa. Só por si, não chega.
Corpo do artigo
Vem todo este ceticismo a propósito de duas experiências de sinal contrário, por que passei, separadas por duas dezenas de anos. A divergência de atitudes faz toda a diferença. Permitam-me, por isso, que vos fale na primeira pessoa.
Poucos dias antes deste anúncio do Governo, decidi-me a fazer uma subida do Douro, da Régua até Barca de Alva. Uma só vez o tinha feito até ao limite da sua navegabilidade e muito antes da classificação do Douro como Património Mundial. Tinha alguma expectativa quanto aos efeitos que tal qualificação teria produzido no turismo local e quanto ao resultado do significativo investimento público e privado ali realizado. E não saiu gorada a minha curiosidade. Que diferença, para melhor! O Douro está, nesta época do ano, deslumbrante. O barco, moderno e bem apetrechado, estava repleto de turistas nacionais e estrangeiros. O serviço, irrepreensível. Senti-me num país desenvolvido, que cresceu sabendo tirar partido do que de melhor há nesta região. Estava no primeiro mundo e senti-me orgulhoso disso.
O pacote turístico que tínhamos comprado incluía o regresso à Régua de autocarro até ao Pocinho e depois de comboio para se utilizar o último troço de linha ainda não desativado. Só que, a partir daqui, tudo mudou de figura. Regressei a um país que já não devia existir. Caí para um terceiro mundo impreparado para receber turistas e para prestar serviços aos seus cidadãos. Na estação do Pocinho, as casas de banho não precisariam de sinalética. Muitos metros antes de lá chegar sabia-se onde estavam pelo mau cheiro que exalavam. As condições de limpeza, em geral, eram lamentáveis.
Até que chegou, finalmente, o comboio. Preparámo-nos para nos sentarmos junto de janelas para usufruir da paisagem do rio visto de uma linha de caminho de ferro que o bordeja permitindo, pensava eu, uma outra visão do belo Douro. Qual quê! As janelas estavam todas cobertas de pichagens que impediam de ver o que quer que fosse para o exterior. A carruagem que interiormente estava em bom estado tinha sido completamente vandalizada no exterior, apresentando uma imagem degradante. Teria sido conspurcada nesse dia e não teria havido tempo para a limpar?, pensei. Que não, disseram. E ponto final. Era como se nada houvesse a fazer e, por isso, não valesse a pena remover toda aquela sujidade.
Podia a CP ter tratado de limpar o exterior do comboio e, com isso, também a sua imagem? Podia e devia. Custa dinheiro? Pois custa, mas mais custa ao país e à região não o fazer. Os autores da vandalização, esses, têm todos os motivos para não parar. O seu território vai continuar marcado.
No início dos anos 90, visitei Bordéus a convite de Chabain Delmas, então maire da cidade e grande personalidade da política francesa. À época, o fenómeno do grafitismo vandalizante não tinha grande expressão em Portugal, mas estava no auge em França. Face à deterioração do espaço urbano, tinha sido elaborada legislação apertada para suster a degradação da sua imagem. Viajava ao fim da manhã com Chabain Delmas no seu carro e passávamos por uma das principais praças da cidade, junto ao rio. O muro que o bordejava estava coberto de pichagens. Parámos, ele pegou de pronto no telefone e ligou para a mairie alertando para a necessidade de imediatamente ser limpo o espaço da conspurcação recente. Disse-me que só poderia ter acontecido naquela madrugada pois tinham sido criadas brigadas especiais de limpeza que durante a noite passavam a cidade a pente fino. E acrescentou que esta seria a única forma de vencer o combate com os bandos urbanos que se afirmam pela marcação do território - demonstrar-lhes que não vale a pena insistir com as pichagens, pois serão prontamente removidas. Esta é uma luta muito dura e difícil, que leva tempo, mas que eu tenho de ganhar, disse-me.
E ganhou...
fernandomsgomes@gmail.com