Quase não há dia sem que alguém do arco governamental nos venha reiterar o seu empenho na realização das reformas estruturais de que o país carece. A julgar pela retórica, as políticas de austeridade transformar-se-iam, como por milagre, em instrumentos de prosperidade se fossem conjugadas com as ditas reformas. A criação de condições de base para que os mercados funcionassem seria, aparentemente, suficiente para que a economia se transformasse numa máquina promotora de crescimento e bem-estar. Viveríamos, hoje, tão-só uma fase transitória, pagando o custo dos desmandos expansionistas incorridos. Segundo a cartilha, os efeitos seriam tão mais significativos quanto mais de perto se seguisse o guião estabelecido por um conjunto de oráculos internacionais, a começar na OCDE e a acabar no FMI.
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Longe de mim negar a necessidade de reformar a justiça, o aparelho de Estado, a saúde, a educação, a lei das rendas ou, mesmo, a legislação que enquadra as relações laborais. Não perfilho, porém, a visão mecanicista que parece ter contaminado alguns dos decisores políticos. Não acredito que as reformas estruturais sejam condição necessária e suficiente para a tal austeridade virtuosa que alguns propagandeiam. É que a economia não funciona no vazio mas, pelo contrário, num quadro institucional concreto, em que a história tem um papel determinante. A capacidade de iniciativa não florescerá, espontaneamente, na quantidade e qualidade necessárias, numa sociedade e numa economia que se habituou a viver e, sobretudo, pensar num quadro fortemente influenciado pelo Estado e pelo horror ao mercado. Precisamos de outras políticas, mas continuamos a precisar de políticas activas. Políticas, e incentivos, que sejam coerentes com as prioridades estabelecidas. E isso mede-se, quer se queira quer não, com base nos recursos que são afectados a cada um desses eixos, desde a internacionalização à inovação, passando pelo combate ao desemprego ou o desenvolvimento equilibrado do território. Não mais recursos. Repartidos, isso sim, em coerência com o discurso. É preciso escolher, tal como se escolheu, por exemplo, alterar a legislação laboral num certo sentido e não noutro. Quase um ano passado, não se consegue discernir uma linha de rumo mobilizadora que faça com que acreditar no futuro não seja uma questão de fé ou seguidismo acrítico.
Tudo se agrava quando, também do lado da despesa, não se consegue distinguir uma orientação que vá para além do corte cego de ordenados e subsídios, sem uma preocupação visível de reforma do aparelho de Estado. Na sua sabedoria, Adriano Moreira dizia que tínhamos ministro do Orçamento mas não das Finanças. A culpa não é, porém, só do Governo. As corporações instaladas na Administração Pública, mesmo correndo o risco de parecerem patéticas, continuam a reivindicar regalias como se nada se tivesse passado. Sendo certo que os Estados Unidos não são exemplo para ninguém no domínio das despesas com a saúde, a verdade é que, por lá, vários especialistas tomaram a iniciativa de se reunirem, tendo recomendado cortes num conjunto oneroso de testes de rotina que, sabe-se hoje, pouco adiantam no diagnóstico quando não têm, até, efeitos contraproducentes. A Ordem dos Médicos que, justamente, se tem mostrado preocupada com o que se passa na saúde, talvez pudesse promover algo semelhante. Se Orlando Monteiro da Silva fosse capaz de alargar este desafio a todas as ordens profissionais, dar-lhes-ia um sentido e, pelo caminho, contribuiria para a verdadeira reforma do país, envolvendo quem está no terreno, pondo as instituições a funcionar melhor e, no processo, não delapidando recursos. Se continuarmos à espera das soluções vindas de cima ou, pior ainda, a considerar e actuar como se o problema fossem os outros, não haverá reformas que nos valham. Acabaremos todos uns contra os outros e a austeridade terá sido em vão. A coesão passa pelo nosso envolvimento numa solução para o bem comum e não apenas na que nos seja mais conveniente.
O autor escreve segundo a antiga ortografia