O meu irmão está em todo lado mesmo quando não surge à primeira vista - mesmo quando é fim-de-semana e prefiro ir ao Oceanário. Já sentia falta de uma crónica pequena, minha e do meu irmão e de mais ninguém. As crónicas pequenas são onde descanso com as grandes coisas.
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Apesar de nos observarmos mutuamente, sempre em espionagens profundas uns dos outros, não vemos irmão nenhum. Basta um cuidado, uma dor nas costas e demais contrariedades, para o Mundo encolher à nossa medida. E eu igual, como numa visita ao Oceanário certo dia.
A bilheteira é um peixe que nos come devagar, e eu não tenho feitio para esperas ou para ser digerido. Sozinho no aguardo, fazia contas às espécies marinhas e fluviais, tentava arranjar-lhes uma ordem íntima, e juntava-lhes as minhas ansiedades, que de tão profundas talvez sobrevivam debaixo de água.
Depois de uma hora, chegava impaciente à boca das bilheteiras, onde um funcionário pequeno, vestindo um casaco desproporcionado, assinalava com a mão um novo entrave. Aqui, apontava o dedo: e aqui mostrava a linha desenhada no chão onde se lia "aguarde a sua vez".
Era o sítio lógico para esperar a compra do bilhete - e ilógico pagar a alguém para que o indicasse. E despropositado vestir um casaco excessivo onde o corpo diminuto desaparecia quase sem regresso. Soltava-se em mim a espécie voraz que abocanha sem conhecer a presa. Na era da técnica, na idade da digitalização, no tempo do Chatbot, e em quantos outros lugares-comuns conseguisse pensar, parecia-me de facto perfeitamente inútil aquela função.
Mas só depois de pensar olhei. Com a mão vinha um braço, com o braço uma pessoa. E voltava a indicar-me o sítio, a apontar para a linha que devia ser a barreira do meu pé. Mas agora já eu esperaria o que aquele funcionário quisesse, iria para onde me ordenasse: era um rapaz e tinha síndroma de Down.
Acanhado por o olhar tão fixo (um olhar insistente que pretendia corrigir a cegueira anterior), o funcionário acanhou-se. Sorriu para o chão. Aguarda, disse baixinho. E deve ter-se sentido aliviado quando por fim avancei para as bilheteiras.
Vi os tubarões, as anémonas, os cavalos-marinhos, vi por inteiro a amostra do oceano - mas tanta beleza pareceu-me insignificante comparada com o meu irmão pedindo-me que aguardasse na fila.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
*Escritor