A Venezuela encontra-se numa situação dramática, acossada por graves dissensões políticas internas que resultam de uma prolongada crise económica e da contínua degradação das condições de vida da população, que inclui uma numerosa comunidade de imigrantes portugueses.
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A condenação pela comunidade internacional das violações dos direitos humanos e dos atropelos ao regime constitucional vigente não contribuiu, até hoje, para amenizar a crise nem para abrir oportunidades de diálogo entre o Governo e a oposição. Bem pelo contrário, é cada vez mais elevada a possibilidade de a crise degenerar num confronto armado que possa oferecer o pretexto para uma intervenção militar externa. Só o intuito de evitar a precipitação desse cenário catastrófico poderá justificar a decisão de vários governos da União Europeia, incluindo Portugal, de reconhecer Juan Guaidó como presidente interino, ainda que estritamente mandatado para realizar as eleições presidenciais que o presidente Maduro rejeitou. O espetro da carnificina emerge. O presidente Donald Trump não só foi o primeiro chefe de Estado a manifestar solidariedade ao autoproclamado presidente interino da Venezuela, como admitiu já a possibilidade de intervenção militar norte-americana para destituir Nicolás Maduro. No mesmo sentido, logo se pronunciou no Brasil o seu indefetível admirador, Jair Bolsonaro.
A comunidade internacional, porém, está profundamente dividida. Não são apenas a Rússia, a China, Cuba ou a Turquia a garantir o seu apoio à República Bolivariana. Da Índia, da Namíbia, do Irão, em registos de variável intensidade, chega a denúncia da interferência perversa nos assuntos internos da Venezuela. E de entre os países vizinhos da América Latina, o México e o Uruguai reclamam uma posição de rigorosa neutralidade e propõem iniciativas para mediar a construção de uma solução pacífica para o conflito interno. As Nações Unidas e, pela voz do Papa Francisco, também o Vaticano recusaram tomar partido por qualquer uma das partes e apelaram à diplomacia e ao diálogo para evitar o derramamento de sangue e conseguir uma saída para a crise, pacífica e democrática.
Assistimos ao longo dos últimos 30 anos a um perigoso retrocesso na capacidade de o Direito Internacional condicionar a política externa dos estados. Múltiplas razões contribuem para explicar esta tendência, desde logo, a acentuação das relações de interdependência no quadro da economia global e o correspondente enfraquecimento do conceito moderno de soberania estadual. Mas foi, sobretudo, o fim do "equilíbrio do terror" - com a queda do império soviético, em 1989 - que criou uma expectativa de "impunidade" responsável pela erosão da velha ordem internacional em proveito da superpotência que sobreviveu. Assim, o uso da força, incluindo a agressão militar externa - sob a invocação hipócrita da defesa da democracia, dos direitos humanos, do combate contra o terrorismo ou da produção de armas de destruição maciça - iria produzir os resultados perversos e sangrentos que tragicamente continuamos a testemunhar no Iraque, na Líbia ou na Síria. Os fluxos migratórios que tanto atemorizam alguns governos europeus e promovem a indiferença e o egoísmo que condena à morte os milhares de migrantes e refugiados que tentam escapar à fome e à desgraça nos seus países devastados são o resultado da instabilidade semeada pelas aventuras belicistas no Médio Oriente. E estão na origem das pulsões racistas e xenófobas, brutalmente exploradas pela extrema-direita que se instalou já nos governos de alguns estados e ameaça desagregar a própria União Europeia. Não se brinca com o fogo! A situação venezuelana é muito grave e não há desculpas para a irresponsabilidade.
*Deputado e professor de Direito Constitucional