Ainda a propósito do regime semipresidencial
Corpo do artigo
A maioria da população mundial vive hoje em estados ordenados segundo uma qualquer modalidade de legitimação democrática do poder político constituído, do Reino Unido aos Estados Unidos, da Índia à Venezuela, de Timor ao Brasil e, ainda muito recentemente, do Egito à Ucrânia. Todavia, as múltiplas modalidades de representação democrática que entretanto se tornaram hegemónicas à superfície do planeta entroncam numa genealogia que procede de dois modelos diversos: o parlamentarismo britânico e o presidencialismo norte-americano. O primeiro configurou-se no princípio do século XVIII. Depois de uma efémera experiência republicana com Oliver Cromwell e a troco da salvação da monarquia, o rei foi destituído de quaisquer poderes executivos substanciais que foram transferidos para a sede do poder legislativo - o Parlamento - e por este "delegados" no "cabinet", submetido a estreito controlo parlamentar. Nos Estados Unidos, após a libertação do colonialismo britânico, o monarca iria ser substituído por um presidente eleito, com mandato temporário e limitado, titular do poder executivo e autónomo do poder legislativo sediado nas duas câmaras do Congresso. São estes os dois modelos clássicos - o parlamentar e o presidencial - ambos internamente articulados em complexos sistemas de "checks and balances" e submetidos a um poder judicial independente.
Entretanto, multiplicaram-se diversos tipos de combinação das duas receitas que deram origem ao semipresidencialismo - o regime misto de que a França foi o primeiro exemplo histórico. O semipresidencialismo é hoje o regime mais comum porque a sua grande plasticidade permite inúmeros modos de acomodação das especificidades culturais dos povos com as expectativas emergentes da conjuntura constituinte. E não se vê qualquer utilidade no confronto de preferências doutrinais por qualquer um dos modelos, independentemente das circunstâncias concretas de cada caso e da respetiva evolução histórica. Por exemplo, o semipresidencialismo português e o timorense são formalmente muito parecidos e, no entanto, perante crises sérias, encontraram respostas muito diferentes.
Em Timor-Leste, o semipresidencialismo serviu originalmente para confiar a governação à força política mais bem organizada - a Fretilin, com Mari Alkatiri - que obteve maioria absoluta nas eleições para a Assembleia Constituinte, mas impediu a exclusão do processo político do CNRT e do líder da resistência, Xanana Gusmão, vencedor das eleições presidenciais, depois de aprovada a nova Constituição. Surpreendentemente, a gravíssima crise política e militar de 2006 não suspendeu a Constituição nem provocou a mudança de regime: Xanana Gusmão renunciou à Presidência e, já depois da eleição de Ramos-Horta como novo Presidente, candidatou-se às eleições legislativas à frente de um novo partido que garantiu a maioria com uma coligação pós-eleitoral, assumindo a Fretilin, desde então, a liderança da Oposição. A transferência da principal força política da governação para a Oposição parlamentar e a transferência do ex-Presidente para a chefia do Governo cumpriram-se com respeito pela vontade popular e dispensaram a revisão constitucional.
Em Portugal, o semipresidencialismo assegurou com êxito a transição pacífica do poder militar para o poder civil e da legitimidade revolucionária para a normalidade democrática, pelas mãos de Ramalho Eanes e de Mário Soares. Contudo, apesar de se ter consolidado, graças a Mário Soares, uma "interpretação parlamentarista" dos poderes presidenciais, não se cuidou de atualizar a Lei Fundamental em conformidade. Inevitavelmente, a gestão presidencial das crises políticas foi-se transformando numa farsa, como se viu, em todo o seu esplendor, no verão passado. A autoridade e o prestígio da função esvaziam-se e degradam-se, arrastando na queda um Governo inimputável, uma Assembleia irrelevante e aparelhos partidários imunes ao escrutínio público. Fecha-se um ciclo vicioso de recíproca anulação de responsabilidades que é urgente quebrar, ou por via da reforma do sistema eleitoral ou por via da revisão constitucional, caso não seja possível por ambas.