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Devia andar no Ciclo Preparatório. Estivemos a falar sobre o 25 de Abril na escola e, como TPC, tinha de escrever uma definição de ditadura. No almoço de domingo, perguntei à mesa qual seria a melhor definição e o meu avô respondeu prontamente: “a ditadura é a ausência de Estado de direito”. Obviamente, na minha cabeça de miúda de onze ou doze anos, não consegui perceber a profundidade desta definição, mas hoje é claro para mim que, de facto, a mais nefasta dimensão dos estados totalitários há de ser a total arbitrariedade do poder e, por consequência, a completa vulnerabilidade dos indivíduos diante de um Estado déspota que põe e dispõe da sua liberdade e integridade física, sem dar direitos nem garantias, sem julgamentos justos ou transparência dos processos.
Nada fica tão patente quando assistimos ao filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, com Fernanda Torres como protagonista. É esse desamparo perante a violência repressiva do regime da ditadura militar brasileira que mais revolta provoca. O facto de ter sido possível, como ainda é em muitos países do Mundo, que alguns homens à paisana entrassem numa casa de família, prendessem pessoas sem dizer porquê, as sujeitassem a interrogatórios violentos, à prisão, à tortura e à morte (em forma de desaparecimento sem nenhum corpo ou satisfação dada) e que isso esteja impune até ao dia de hoje.
Os minutos intermináveis em que aqueles homens estão dentro da casa da família de Eunice Paiva são sentidos como uma eternidade e a tensão é tanta, que a primeira parte do filme (toda feita de boas memórias, dias de sol e praia, amigos e música) é totalmente eclipsada pela claustrofobia do pânico e pela ansiedade da incerteza. É a intimidade da casa e da família que é devassada pela violência. Um membro arrancado a sangue-frio, sem pré-aviso, sem explicações, num total silenciamento, sem direito a ritualizar a perda, sem corpo, sem luto, sem fechamento.
Mas o filme é muito mais do que essa perda, é sobretudo sobre a força inabalável de uma mulher, sobre a sua imensa dignidade, a sua capacidade de resistir. Uma mulher da geração da minha avó, que tantas lições me deu sobre força e dignidade, mesmo sem ter consciência disso. Essa geração de mulheres que viveu o mundo da Segunda Guerra Mundial, que criou filhos em ditadura, que só na idade adulta pôde celebrar a liberdade e, finalmente, votar, exercer o seu direito de opinião, de ter uma conta bancária, de escolher. Essa geração de mulheres que foi forjada para ser contida, impassível, abnegada, mas cuja força esteve sempre acima da domesticação.
Que bom poder celebrar, em duas horas de bom cinema, essa força, a figura de Eunice Paiva, a história inacabada do seu marido e a memória de tantas famílias que ficaram mutiladas por todas as ditaduras do mundo. Não percam!