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Ainda me sinto envergonhado, depois de ter assistido na passada sexta-feira ao interrogatório a Daniela Martins, mãe das gémeas, na Comissão Parlamentar de Inquérito. Envergonha-nos a todos quando os nossos representantes promovem um espectáculo cujo objectivo nunca foi a busca da verdade.
Sem qualquer decoro nem reserva face ao sofrimento de alguém que apenas procurou a salvação das filhas, o que foi ali a verdade senão um pretexto? O que se inquiriu que não estivesse já sob escrutínio judicial e das entidades envolvidas, como a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, que escreveu um relatório esclarecedor?
A figurinha de André Ventura, com o seu disfarce de aluno luzidio e bem-comportado que pela calada se comporta mal, tornou-se ainda mais desprezível. Quis imolar Daniela Martins pelo fogo mediático e, com excepções honrosas, conseguiu arrastar com ele outros deputados.
O Chega usou a CPI como instrumento de excitamento mediático, lançando o ónus sobre os imigrantes - nós contra eles, nós os virtuosos, eles os abusadores - e querendo mostrar-se como o bastião da moral e da virtude, na alegada defesa de um sistema puro e igualitário para os portugueses de bem.
A juntar ao caos público a que tem sido sujeita desde o final do ano passado, Daniela Martins - para todos os efeitos portuguesa, para todos os efeitos mãe de duas crianças portuguesas - foi exposta a uma súcia de assanhados que quiseram fazer dela a purga de pecados tão comuns como a cunha. Em particular o próprio André Ventura, que até tentou passar o famoso vídeo, comprometendo de novo a privacidade das crianças - com a agravante de o fazer no Parlamento.
Logo de seguida, à boa maneira de gente sem escrúpulos, as redes do Chega encheram-se das intervenções do queridíssimo líder com títulos gritantes como: “A mentira tem perna curta! André Ventura desmascara mãe das gémeas” e “Os portugueses foram burlados, nós só queremos a verdade!”
Perante a instrumentalização da dor de uma mãe que passou e passa por um calvário (parece que os deputados não ouviram as alegações iniciais), uma mãe cujas filhas nunca estarão verdadeiramente curadas, face à desumanização a que assistimos na CPI, não quero saber de supostas contradições nem de supostos encobrimentos, tanto mais que o escrutínio sobre a matéria de facto estava assegurado noutras instâncias. Prefiro saber da nossa vergonha colectiva por sermos representados por quem deixou que isto acontecesse.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)