De facto, a principal preocupação revelada por Cavaco Silva no famoso prefácio que há duas semanas levantou tanta polémica foi justificar a nomeação, em 2009, do governo minoritário de José Sócrates, a inevitabilidade da convocação das eleições antecipadas de 2011 e a demonstração, por fim, de que a sua interpretação do mandato presidencial é coerente e permanece fiel à herança de Mário Soares e Jorge Sampaio. Assim, a "magistratura ativa", correspondente à necessidade de reforço da intervenção presidencial no quadro atual de "emergência social e económica", seria a principal linha de força do mandato do atual presidente. Mas o "ativismo" prometido tem limites estreitos que Cavaco Silva se apressa a enunciar - "(...) mesmo admitindo que o presidente, através de uma forte pressão, consiga alterar a posição e a estratégia de um partido, levando-o a aceitar, a contragosto, coligar-se com outro para formar governo, entendo que não o deve fazer. (...)". Esta rejeição categórica não comporta qualquer margem de hesitação e é detalhadamente explicada e concretizada mais adiante: "Se um partido manifesta a posição firme de não querer coligar-se com outro (...) não poderão o empenhamento e a influência do presidente, por maiores que sejam, criar condições de solidez e durabilidade governativa onde à partida não existem (...). Não tenho dúvidas de que seria isso que teria acontecido se, em Outubro de 2009, tivesse forçado, para além do razoável, a constituição de um governo de coligação (...)". Fica assim justificada a nomeação do Governo minoritário do PS, em 2009, apesar da grave crise financeira internacional e, em coerência, a antecipação das eleições de 2011, apesar de o país já se encontrar na iminência da bancarrota.
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Porém, a admitir como certo e justo tudo o que aí vai, para que serve então um presidente da República, com o atual recorte constitucional que lhe confere reforçada legitimidade democrática e o transforma momentaneamente no árbitro definitivo das crises institucionais? Este perfil de um presidente eleito por sufrágio direto e universal foi moldado nos anos turbulentos que marcaram os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1975 a 1976, e reflete, como se disse, receios ancestrais mas também as preocupações próprias do período de transição do "momento revolucionário" para a "normalidade democrática", que apenas se iria completar com a revisão constitucional de 1982. Com esta revisão, foi extinto o Conselho da Revolução, cujos poderes políticos e militares foram redistribuídos entre o presidente, a Assembleia da República e o Governo. E foram criados dois novos órgãos para o substituir: o Conselho de Estado - órgão de consulta obrigatória do presidente, em circunstâncias predeterminadas - e o Tribunal Constitucional - herdeiro das suas competências de fiscalização da constitucionalidade. Até 1982, o presidente da República - Ramalho Eanes - presidia por inerência ao Conselho da Revolução e carecia do seu parecer favorável para dissolver a Assembleia da República. O fim desse período foi marcado pelo fracasso de três sucessivas tentativas de formação de governos "de iniciativa presidencial", entre agosto de 1978 e janeiro de 1980, que suscitaram forte oposição dos líderes dos dois principais partidos políticos: Mário Soares e Francisco Sá Carneiro, que iriam recusar o seu apoio à reeleição de tal presidente. Ao longo de pouco mais de um ano, Ramalho Eanes deu posse a três governos de três primeiros-ministros da sua confiança: Nobre da Costa, Mota Pinto e Lurdes Pintasilgo. E viu-se por fim obrigado a convocar eleições legislativas "intercalares". Um presidente para quê? Para justificar a desresponsabilização do Parlamento e dos partidos nele representados!
"In memoriam"
Quero assinalar aqui a irreparável perda de António Tabucchi, a quem tanto devem as letras portuguesas e a cultura europeia. De Antonio Tabucchi guardo com emotivo zelo um livro sobre os ciganos de Florença, que gentilmente me ofereceu, em 1999: "Gli Zingari e il Rinascimento". A nossa dívida é incomensurável.