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As duas últimas semanas foram dedicadas, de forma persistente e clamorosa, às notícias e comentários sobre as buscas domiciliárias ao ex-presidente do PSD Rui Rio. Por esse motivo, o processo Picoas, com buscas domiciliárias e não só, executadas em simultâneo com aquelas outras, não teve oportunidade de ser dissecado publicamente. Extinto o fervor que envolveu o primeiro destes inquéritos, eis que a violação do segredo de justiça, no âmbito dos autos relativos à empresa Altice, assumiu agora o papel principal.
As imputações criminosas aos arguidos não provocaram nenhuma reacção relevante. Foram identificados os arguidos, a sua localização, as suas moradas, imóveis e móveis por eles possuídos, as apreensões efectuadas, contas bancárias em offshores e mais detalhes inadmissíveis nesta fase do processo. Os média apoderaram-se da investigação e verteram a conta-gotas, para os jornais e televisões, segmentos fundamentais da matéria fáctica em segredo de justiça.
É evidente que a Comunicação Social teve acesso a informação privilegiada fornecida por abusadores e irresponsáveis com acesso legítimo aos autos. De tal forma é notório este conluio criminoso que, em artigo vertido em revista semanal, se alude ao conteúdo de escutas telefónicas efectuadas em resumo, tal como constam do processo, vigilâncias, relatórios de diligências e intercalares apresentados pela AT ao MP, relatórios elaborados pelo magistrado titular, identificando, ainda, amigas íntimas dos dois principais arguidos. São expostos factos relevantes para o inquérito, conversas telefónicas de cariz pessoal e íntimo com a divulgação, inclusive, da parte do processo onde ficou inserido o relatório de uma operação de vigilância ocorrida no Aeroporto do Porto. Esta publicitação prematura e ilegal de indícios criminosos prejudica a imagem da justiça, do MP, da AT e do JIC.
Mas se a deontologia do(s) informador(es) não existe, será que não os incomodam as nefastas consequências para a vida familiar dos envolvidos no processo, que ainda não foram acusados? Devassa-se a vida íntima das pessoas, prejudica-se a investigação, sem qualquer problema de consciência. Põem em causa toda uma investigação de crimes que afectam a comunidade em geral, contaminam o inquérito e a normal sequência do processo, acusação-julgamento. Qual a intenção? Que ganhos obscuros pretendem obter estas toupeiras? Não é possível continuar a fazer de conta que não é fundamental a preservação do segredo de justiça ou que não existe a sua violação nos casos mais mediáticos. É tempo de se enfrentar o problema, que existe e resiste. Estas violações ferem a dignidade da justiça e colocam em crise a aceitação da decisão judiciária pela comunidade. A justiça é um dos alicerces estruturantes da CRP. Se banalizarmos comportamentos e factos que a desgastam, comprometem e confrontam, é a nossa casa democracia que fica perigosamente mais débil e amorfa.
A autora escreve segundo a antiga ortografia