1. A pausa estival convida a uma reflexão mais fria e alargada sobre as causas da crise de representação que hoje afeta todas as democracias e, em particular, a nossa.
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Aqui, a questão central não reside, de facto, na abolição da frequência quinzenal dos debates parlamentares com o primeiro-ministro, pese embora o seu significado simbólico e a perceção da opinião pública. Contudo, parece excessivo e tornou-se inevitável oportunidade para todas as especulações e equívocos, a leviandade com que o Parlamento decidiu dispensar o chefe do Governo de comparecer a três dos quatro debates a que anteriormente estava obrigado, conforme disposto no regimento da Assembleia da República até agora em vigor! O dissenso expresso na votação das alterações ao regimento por representantes dos dois maiores partidos - e mais significativo ainda entre os deputados do partido do Governo! - é um sinal positivo e um testemunho da vitalidade da nossa cultura democrática.
2. A crise, como dizia, afeta todas as democracias desde as mais antigas e supostamente melhor consolidadas - como o Reino Unido e os Estados Unidos da América - até às mais frágeis e incipientes - como a Polónia, a Hungria, o Brasil, a Índia ou as Filipinas. A soberania estadual - uma ficção inventada pelo Direito Internacional Público há mais de trezentos anos para "revogar" o Tratado de Tordesilhas - tornou-se entretanto inverosímil e arrastou na sua queda a soberania popular inscrita no constitucionalismo democrático alguns séculos depois. Por outro lado, a permanente exposição pública dos membros do Governo perante uma comunicação social extremamente fragilizada pela concorrência selvagem num universo mediático cada vez mais concentrado ao nível global teve consequências muito perversas, quer no exercício da ação governativa quer no seu escrutínio, constitucionalmente assegurado aos representantes do "povo soberano". A governação foi-se transformando, assim, num espetáculo circense enquanto a função legislativa de controlo e fiscalização do poder executivo se resignava ao estatuto de paródia inconsequente.
3. E é este o ponto da situação presente. É indispensável assumir um programa político audacioso que, num contexto adverso, saiba diagnosticar as causas profundas deste mal-estar. Com efeito, não é a periodicidade dos debates parlamentares o que compromete o controlo e a fiscalização da ação governativa. O enfraquecimento da autonomia parlamentar precisa de ser combatido nas suas raízes: um sistema eleitoral enviesado que condiciona a representação popular a listas de candidatos fechadas, confecionadas segundo as conveniências das direções partidárias e o funcionamento clubístico de partidos que encaram com uma desconfiança arcaica e sectária o pluralismo e o confronto de opiniões hoje indispensáveis para enfrentar o Mundo conturbado em que vivemos.
*Deputado e professor de Direito Constitucional