1. Sabemos hoje muito mais sobre o vírus que nos continua a atormentar do que sabíamos há alguns meses.
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Sabíamos apenas que viajou a partir da Ásia a uma velocidade vertiginosa e que não foi trazido pelas vagas de imigrantes e refugiados que tanto assustam os indígenas europeus.
Não! Veio, confortavelmente, de avião, recreou-se em algumas estâncias de turismo de inverno dos Alpes e dos Pirenéus, e chegou ao Norte de Portugal com a bagagem de industriais de calçado que regressavam de uma feira em Milão!
Sabemos agora que a covid-19 tem preferência pelas vias aéreas, gosta do ar condicionado mas não desdenha as condições precárias de alojamento onde se confinam famílias numerosas em bairros miseráveis nem os transportes coletivos sobrelotados com utentes que não se podem dar ao luxo de "confinar". Além da estrutura e composição do vírus e da experiência de tratamento de milhões de casos, algumas coisas podemos já dar como certas.
2. Em primeiro lugar, constatar o fracasso da política "negacionista" que a pretexto de uma teoria carente de confirmação científica - a chamada "imunidade de grupo" - tentou alienar a responsabilidade própria dos poderes públicos para a categoria dos fenómenos naturais, na expectativa cínica de até obter eventuais ganhos com a diminuição do volume dos encargos sociais com velhos e doentes: repare-se nos recuos a que se viram obrigados governantes do Reino Unido, dos Estados Unidos da América, do Brasil ou da Suécia.
Até Donald Trump arrisca perder as eleições presidenciais de novembro a favor do candidato cinzento apresentado pelo Partido Democrático.
3. Por outro lado, confirmar a importância da solidariedade internacional, da coordenação inteligente, da partilha de informação e da articulação eficaz das organizações setoriais com as diversas escalas territoriais, para travar os surtos de contágio, prevenir o colapso dos serviços de saúde e poupar vidas humanas.
Contudo, nenhum indício nos autoriza a prever por quanto tempo ainda vai durar, qual a extensão que poderá atingir nem a dimensão das consequências sociais, económicas, culturais e políticas. A alteração profunda dos equilíbrios geoestratégicos tradicionais é inevitável.
4. Estremeceu, por fim, o paradigma dominante desde os anos oitenta que promoveu as leis de mercado a modelo de organização política e administrativa da sociedade humana, na era da globalização. A obsessão desregulatória avançou com a deslocalização das empresas, a aprovação de tratados de comércio livre, a generalização da aquisição externa de serviços e recursos humanos (outsourcing), a precarização das relações laborais.
O Estado e o seu corpo administrativo foram declarados inúteis e dispendiosos. A pandemia expôs e agravou as desigualdades preexistentes. Mas essa era acabou! A nós pertence configurar o futuro.
*Deputado e professor de Direito Constitucional