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“Ainda temos o amanhã” é um filme belíssimo. O blockbuster, que superou o filme da Barbie no ano passado em Itália, chegou finalmente às nossas salas e vale muito a pena. É o primeiro filme realizado por Paola Cortellesi, a experimentada atriz que também é a protagonista da história e que faz o papel de Delia, uma mulher de família, na Roma do pós-guerra, ainda ocupada pelos soldados americanos.
O quotidiano de uma mãe de família de um bairro popular é o fio que vai desenrolando a ação, numa tragicomédia sobre a opressão das mulheres e a violência doméstica, que nos vai mostrando as armadilhas (brutais ou ardilosas) da vida das donas de casa, numa sociedade profundamente desigual e machista.
A forma desabrida como o filme nos mostra as injustiças e a vitimização das mulheres é equilibrada pela delicadeza como suaviza (sem aligeirar) alguns momentos mais gráficos, pela subtileza de alguns gestos, pela ironia dos diálogos, pelo humor com que nos surpreende por vezes e sobretudo por destacar, acima de tudo o resto, a sororidade e a capacidade de sublimação a que a maternidade nos obriga (para o bem e para o mal, mas sobretudo pelas próximas gerações).
Sendo um filme sobre opressão e violência, fala mais sobre esperança e resistência. Sobre a fibra das mulheres que fazem girar o mundo, sem romantizar a tal capacidade de sublimação, mas celebrando a sua grande dignidade, celebrando a amizade que nos salva nos dias piores, a sabedoria das mulheres que protegem as meninas, a consciência coletiva que nos tem fortalecido, a resiliência com que nos mantivemos sãs apesar de tudo.
No fim revela-se um filme sobre a forma como a democracia fez ascender a condição da mulher à cidadania e como isso foi poderoso, quer do ponto de vista político e simbólico, quer no que tem que ver com o autoconceito. Depois de séculos de desumanização, de objetificação, de opressão e violência, o reconhecimento do direito ao voto é uma conquista histórica que reforçou a autoestima das mulheres, não só pela legitimação da sua luta, mas pela sua consagração como indivíduos, com direitos e poder de decisão. E ainda que as suas condições objetivas de vida não tenham mudado no mesmo dia, muito mudou por dentro.
Enfim, eu chorei, sorri, chorei de novo e saí do cinema com vontade de voltar. É que do contraste entre a banda sonora contemporânea e o preto e branco da imagem, passando pelo elenco transgeracional, faz-se um filme pop, que pisca o olho ao neorrealismo italiano, e que está perfeitamente enquadrado na tendência dos bons filmes feministas com apelo mainstream.