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Provavelmente a confusão instalou-se desde que, na era digital do Windows, o balde do lixo se confundiu com reciclagem ou "recycle bin". Ao eliminar qualquer documento ou ficheiro, ao som esmagadoramente escolhido de amarfanha-papel, a ideia ilusória de que se enviava algo para a reciclagem era combatida pela imagem: era mesmo um balde do lixo. Tanto assim era que, depois, tínhamos que o despejar quando o computador nos perguntava se queríamos esvaziar a reciclagem. Ao que respondíamos prontamente: claro que sim, é lixo!
No dia em que, em edição especial, o JN faz 127 anos e nos propõe uma avaliação do país na conferência "Por Portugal", pergunta-se também por um país tapa-buracos onde a sociedade civil se autoconvoca continuamente para exercícios de cidadania mesmo quando os tempos são difíceis ou mesmo cruéis, quando o que se avizinha são os cortes de uns ou as promessas de insustentabilidade de outros. E é por isso que os portugueses encontram na ajuda humanitária uma forma de ajudar sem psicanalisar o seu desperdício, como se comprova pelas 1487 toneladas de alimentos recolhidos pelo Banco Alimentar Contra a Fome (BACF) até ao fim da tarde de domingo. Com 42 mil voluntários espalhados por duas mil superfícies comerciais e direccionados para os 21 bancos de recolha em todo o país, este acréscimo de 5% das contribuições em relação à mesma campanha do ano passado é francamente animador numa população que - segundo um estudo da Associação de Defesa de Consumidores (Deco) - tem dificuldade em distinguir entre "consumir até" e "consumir preferencialmente antes de". Segundo inquérito da Deco, dois terços da população não sabe a diferença. Até ou antes de. É assim que o incauto desperdiçador que desperdiça sem saber valoriza o seu acto civilizacional de ajuda, sabendo que pode ajudar e não hesitando em fazê-lo. Normalmente é mais fácil quando as pessoas sabem.
No ano passado, uma em cada três pessoas que recorreram a instituições de solidariedade social afirmou ter passado fome pelo menos uma vez por semana por não ter dinheiro para comer. Pobreza ou miséria, portanto. Mas os números da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) também impressionam, estimando 1,3 mil milhões de toneladas de comida que seguem anualmente para o lixo num desperdício alimentar sem precedentes e com razões multifactoriais bem assentes no senso comum das promoções excessivamente consumistas, nas deficientes condições de armazenamento e de transporte e nos curtos prazos de validade de alguns bens alimentares. No Reino Unido, por exemplo, desperdiçam-se, anualmente, cerca de 4,3 milhões de toneladas de alimentos próprios para consumo. O consumidor no divã. A psicanálise do consumismo dirá que a mensagem inversa também é verdade já que não pára de crescer no consumidor a ideia de que há uma "pegada ecológica alimentar" que obriga a quem desperdiça a ter que pagar, retribuindo em ajuda e consolo suplementar. Assim é em Portugal e também no resto da Europa.
Na actual digressão dos U2, a mensagem "Unfuck Greece" é mostrada no vídeo da canção "Bullet the Blue Sky". Originalmente escrita para o álbum "The Joshua Tree" (em 1987) como crítica ao apoio dos EUA ao Governo militar de El Salvador em 1980 aquando da guerra civil no país, a canção serve de porto de abrigo para as ofensivas dos nossos dias. A luta contra a miséria e pela defesa dos direitos, justiça social e democracia dos campesinos de El Salvador transfigurou-se. Hoje, são os EUA que recomendam prudência à União Europeia na forma como continuam a (não) lidar com o problema grego, desprezando-o, como se não fosse uma questão vital para a reconstrução europeia. Como tentamos fazer ao desagregar os dislates de Isabel Jonet do BACF, é importante não fulanizar quanto se trata de combater a pobreza. Também a Europa terá de despersonalizar de Tsipras, saindo do corpo do primeiro-ministro grego para perceber que os gregos já deram o seu corpo ao manifesto. Depois da Grécia, será a vez dos bons alunos da Europa e, posteriormente, o fim do projecto europeu. Na penúltima faixa de "The Joshua Tree" canta-se "The hands that build/ Can also pull down". A canção chama-se "Exit".