A terrível imagem de Alan Kurdi, o menino sírio de dois anos encontrado morto no areal de uma praia turca, voltou a atormentar-nos esta semana. Porque o corpo de uma criança a ser lavado pelas ondas, cara encostada ao areal, t-shirt vermelha e calções azuis, ainda nos deixa de coração partido. Mas sobretudo porque, cumprida uma década de um postal negro que forrou as capas dos jornais do Mundo (incluindo deste), percebemos que nada mudou.
Corpo do artigo
A compaixão coletiva foi-se desvanecendo, ancorada numa normalização do mundo ocidental perante as tragédias humanitárias. E a desconfiança crescente em relação aos "forasteiros", sejam eles crianças ou não, fez o resto.
Desde 2015, morre, em média, uma criança afogada por dia enquanto tenta atravessar o Mediterrâneo Central entre o Norte de África e Itália. Números da Unicef certamente subestimados, devido à falta de testemunhas em grande parte dos casos. O imenso cemitério de crianças em que se converteu o oceano pode facilmente comover-nos, mas nem por isso assistimos a mudanças nas políticas de acolhimento e, em particular, no discurso político que tolda essas estratégias.
A Europa é, hoje, um continente menos tolerante, menos acolhedor e mais desconfiado. Também porque, no seu âmago, está mais desigual para os "seus". A crise humanitária dos que não têm nada transformou-se numa crise de sobrevivência dos que querem ter tudo. O canto das sereias extremistas que inebria as massas tem como força motriz uma realidade insofismável: não há lugar para todos no eldorado da civilização.
Na última década, a história de Alan Kurdi repetiu-se milhares de vezes. Assim continuará nos próximos anos. E a lição que julgávamos ter aprendido com um pequeno corpo entregue ao quebra-mar foi, afinal, outra. A de que a morte daquele menino sírio, e a de todos os Alan que se seguiram, não serviu para absolutamente nada. Ficou só uma história triste.