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Um automóvel sem condutor da Uber, em circulação experimental no Arizona, Estados Unidos da América, atropelou mortalmente uma mulher que atravessava a rua fora da passadeira. O computador não identificou o peão que circulava por onde não tinham suposto a presença de um ser humano, o condutor suplente - humano - não conseguiu corrigir a manobra e, acertadamente, a Uber suspendeu de imediato todos os testes de carros sem condutor até que consiga identificar o defeito do algoritmo que terá estado na origem do acidente a fim de prevenir novas tragédias. Acerca das mais recentes conquistas da Inteligência Artificial, os especialistas confessam que "conseguimos construir estes modelos mas não sabemos como funcionam"... Explicam que a complexidade destes sistemas informacionais de última geração torna extremamente difícil reconstruir o processo que conduziu a uma determinada decisão, seguindo o seu rasto através de camadas sucessivas de "redes de neurónios artificiais" que processam um número incalculável de dados, de perceções, imagens, variáveis e cálculos matemáticos! Até agora tendia-se a acreditar que os algoritmos da Google, da Apple ou do Facebook pareciam merecer mais confiança do que as instituições contemporâneas que desde a revolução das luzes foram inventadas pelos filósofos, constitucionalistas e cientistas políticos, com base na reflexão e no estudo da experiência milenar da história da Humanidade, da ascensão e queda dos impérios, e do florescimento das civilizações. Mas repetimos uma séria advertência: os resultados imprevisíveis e imperscrutáveis a que chegam estas máquinas aconselham que desconfiemos das explicações que a Inteligência Artificial nos conceda tanto quanto desconfiamos dos humanos! Na verdade, só agora começamos a descobrir a desmesurada dimensão dos novos desafios que nos confrontam.
Bem pelo contrário, no escândalo da Cambridge Analytica não houve propriamente surpresas. Não é possível afirmar que os resultados alcançados pelo algoritmo do Facebook se ficaram a dever a um qualquer imprevisto. Tal como eles desejavam, os adeptos do abandono da União Europeia ganharam o referendo britânico, Donald Trump venceu as eleições presidenciais americanas e a coligação pré-eleitoral dos neofascistas italianos conseguiu obter o maior número de votos nas recentes eleições legislativas. São os próprios responsáveis das respetivas campanhas eleitorais e os seus eleitos quem se gaba de tais proezas e a empresa-chave de tais prodígios, a Cambridge Analytica, discute agora com o Facebook de quem são as responsabilidades pela violação dos dados pessoais dos 50 milhões de eleitores americanos que utilizaram esta rede social. Uma televisão britânica, o Channel Four, montou uma armadilha ao professor da Universidade de Cambridge que preside a essa instituição, fazendo-se passar por um cliente do Sri Lanka empenhado em eleições locais. E as revelações são catastróficas: o ilustre professor mais os seus associados mostraram-se dispostos a facultar, além das habilidades algorítmicas, outros recursos extraordinários: a promoção de notícias falsas, esquemas de suborno e escândalos sexuais forjados, para vencer os adversários do suposto cliente...
Tal como Adolfo Hitler, exímio na utilização das novas tecnologias de comunicação do princípio do século XX - o cinema e a rádio - como instrumentos de propaganda e conquista do poder, também a extrema-direita manipula, hoje, as redes sociais como estratégia política para destruir as democracias e dominar o Mundo. Em vez dos judeus, dos ciganos, dos sociais-democratas e homossexuais, os alvos mais vulneráveis são hoje os imigrantes e os refugiados, os desempregados e os trabalhadores precários, os jovens e todos os que perderam a esperança. Aqueles prodígios tecnológicos não foram objeto de escrutínio porque se cuidava apenas de prosseguir legítimas finalidades privadas, de estratégias publicitárias, da maximização dos lucros, em nome do mercado livre e da sagrada liberdade de expressão.
A pior imundície privada acaba sempre por ser descarregada na vala comum do interesse público. Se as democracias não travarem a desregulação global, económica e financeira, eles se encarregarão de acabar com a democracia e com as nossas mais valiosas aquisições civilizacionais.
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL