Quem gosta do Astérix sabe que, em quase todos os álbuns, alguém diz "Estes romanos são loucos!" Os romanos não são de certeza mais loucos do que os outros. Mas que alguns marselheses estão (não sei se são) loucos, ai isso estão, e concentram-se na Câmara e no equivalente francês do INEM. A questão veio a lume há uns dias, e conta-se depressa.
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Com a melhor das intenções, estão a ser distribuídos aos sem-abrigo marselheses (e há-os, bastantes) "cartas de socorro", que deverão ser preenchidas e mantidas em local bem visível, com a indicação do nome e do apelido do sem-abrigo em questão, assim como referência explícita às doenças crónicas que a pessoa possa ter, como a diabetes, a doença cardíaca, o HIV e a esquizofrenia. Não se trata de uma opção: é um dever, apenas aplicável àquela categoria de pessoas. Pressupõe-se, pelo que se compreende das explicações algo atabalhoadas da Câmara de Marselha, que, tratando--se de pessoas vulneráveis pela ausência de laços sociais, a medida é necessária para salvar vidas.
Ora, se logo a começar causa espécie que só os sem-abrigo sejam sujeitos a tanto desvelo (uma vez que a maioria consegue exprimir-se e dizer o que tem ou o que não tem como doenças), do ponto de vista não material a opção agrava-se pelo facto de, na parte de trás do cartão, estar inscrito um triângulo amarelo. E aí, mexemos na História e é o diabo a quatro.
Qualquer um que procure estar atento ao que nos rodeia tem a noção de que, em sociedades muito competitivas como aquelas em que agora vivemos, a tendência para a classificação, a hierarquização e a catalogação é cada vez maior. Por razões de eficiência, por exemplo, criaram-se empresas que se dizem mais competentes a ajudar a escolher e a excluir, a puxar a si o "eleito" ou a deixar no meio da manada todos os restantes.
A "Ciência", agora, também ajuda nestes processos cada vez mais deterministas e darwinianos. Ainda há pouco, a diferença entre quem tinha meios e os restantes era a capacidade de poder diagnosticar o mais cedo possível a maleita e, depois, aceder às formas mais evoluídas de a tratar. Hoje, antecipa-se, definem-se probabilidades: de ter cancro, de ter Alzheimer, de ter isto ou de ter aquilo, definem-se riscos que podem vir a condicionar a hipótese do empréstimo porque, por exemplo, pode a companhia de seguros não ter interesse nenhum em segurar aquilo que acha que não é seguro. E temos, então, um belo negócio: porque, determinando-se a priori aquilo que é seguro, desaparece ou fica bem diminuída a imponderabilidade (a roleta) que sempre fora associada à saúde ou à falta dela. Quanto à doença, aliás, sempre me pareceu irónico este sentimento de posse (o "ter") relativamente àquilo que de certeza bem se dispensaria, mas a língua é assim, tem - justamente - destas coisas.
E, depois, temos a loucura abjeta da classificação. Aquela em que o "classificado" é tido como inferior ou intocável e em que o objeto da tipificação é a diminuição, a perseguição ou a eliminação do "outro". Os nazis bem nos "ensinaram" como fazer, fosse em relação aos judeus, aos ciganos, aos homossexuais, aos deficientes, aos comunistas ou a outros. E não faltam exemplos, ainda hoje, desta definição implícita ou explícita do inimigo ou do alvo.
Não deixa de ser verdade, no entanto, que a Alemanha nazi (em medida menor, a África do Sul do apartheid) levou ao esplendor burocrático a obsessão que tinha em relação aos seres "inferiores". Definiu-os, estabeleceu graus de parentesco, classificou-os, catalogou-os, atribuiu-lhes, até, símbolos identificadores: no caso, as famosas estrelas cujo uso impôs, essencialmente, aos judeus, introito ao plano de extermínio depois executado.
E aqui é que entra o "triângulo" amarelo dos sem-abrigo de Marselha. Como disse, a simples existência do cartão de saúde que deve ser exibido incomoda e é discriminador pela exibição. A sua associação inevitável a um passado de repelência é estúpida, incompetente e indefensável.
Ora, aí, não há boas intenções que possam ser invocadas e até discutidas calmamente. Aí, estou do lado dos sem-abrigo de Marselha. Aí, a estupidez ignorante deve ser castigada.
