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Amanhã conhece-se o novo Prémio Nobel da Literatura. Por esta altura do ano, as casas de apostas - não as conheço, não sei o que são, mas imagino antros onde se tratam escritores como cavalos - classificam nomes de prováveis a menos prováveis, de nobilizáveis a menos nobilizáveis, de primeiro a vigésimo, de vigésimo a centésimo. Ano após ano, uns sobem, outros descem. Eu enterneço-me: há mais ficção ali do que em muitos romances de quem ganhou o Nobel.
A certa altura, alguém se indignava porque o nosso Fernando Pessoa, o grande criador dos heterónimos, o poeta dos poetas (etc.), não ganhou o Nobel. Nesse caso, nem as casas de apostas, se existissem então, se lembrariam de ideia tão absurda. É que, para ganhar o Nobel, convinha ter publicado em vida mais do que um livro - e convinha ter sido traduzido.
Nenhum prémio é o toque etéreo de Deus sobre um talento puro que se eleva entre os mortais. Tomando-os como tal, uns poucos estariam à altura de tamanha luz, todos os restantes a falhariam. Talvez um prémio seja isto e apenas: um conjunto de leitores, de preferência óptimos, que pretende agradecer a obra de um escritor que admiram. Não acho pouco, também não acho muito - e bem sei que todos os leitores, até os óptimos, têm as suas idiossincrasias, embirrações, preferências políticas, temperamentos e influências.
E sei outra coisa: em muitas atribuições, descubro com alegria, aliás, com enorme apetite intelectual, o quanto ignoro. Ou seja, o quanto posso deixar de ignorar. Assisto em directo, ouço o nome tantas vezes acabado de descobrir e corro a uma livraria. No meu entusiasmo infantil, julgo ir a caminho dos voos em asas de ganso como os de Selma Lagerlöf, grandes e tristes migrações como as dos okies de Steinbeck, a secura masculina de Hemingway, uma certa repetição melancólica e aborrecida de Modiano, o vórtice intenso de Faulkner, as catástrofes quotidianas de Alice Munro ou a exuberância de García Márquez.
Certa ocasião, achando que não houvera tempo para eu chegar à livraria, já que a notícia mal começara a circular, um livreiro olhou-me com alívio. "Ah, vai comprar esse?" Eu pretendia responder-lhe com entusiasmo, sim, o escritor acaba de..., quando o livreiro, um pouco agastado - como se alguém lhe tivesse roubado um tesouro que só era bom por ser segredo -, respondeu-me, suspirando: "Sabe, ganhou agora mesmo o Nobel..."
Calei-me e, meio envergonhado, saí da livraria com o livro debaixo do braço. É que roubar um tesouro desconhecido é um feito de camaradagem. Mas roubar um tesouro que toda a gente conhece é puro descaramento.
O autor escreve segundo a antiga ortografia