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Celebram os amores de literatura, os amores de cinema - quase todos juvenis e prontos a morrer de paixão, de cama, do que seja. Eu também acho Shakespeare a coisa mais bela. Mas os ficcionistas, cujo prazo de validade para a paixão é por norma a adolescência, pouco pegam nas histórias de amor para a vida (nada parecidas com as histórias de amor para a morte), pouco pegam no amor que já se sentou cansado no sofá à frente da televisão.
Mas reparem que as histórias de amor de velhos estão sob a mesma espada de Shakespeare: em breve, os amantes separam-se. E com eles se separa uma vida, não apenas alguns meses ou dias.
No outro dia, testemunhei um desses amores. Ele com oitenta e oito anos, ela com oitenta e seis. Bem vi: amam-se tanto, que, depois de sessenta anos de casamento, já não conseguem ver uma série um sem o outro. O amor faz isto - pensa quem lê - uma dependência íntima, uma fragilidade imoderada em que a Netflix não interessa sem a pessoa amada.
Procede-se assim no amor a quatro olhos.
Ele pega primeiro no comando. Mas é ela quem vê onde está o botão da Netflix, e ela quem repara que a bolinha do buffering empancou. Depois ele selecciona as séries, mas é ela a dizer que faltava um episódio do thriller da semana passada.
Agora, repara ele, apareceu de súbito um novo actor, mas ela lembra-se de que a personagem tinha morrido na temporada anterior. Ele acha que a cara é quase igual mas o papel não é o mesmo.
Aqui começa a prova de estafetas. Ela adormece primeiro com a cabeça sobre o ombro dele. Acorda perante o rapto do actor que ainda agora estava por decidir se era afinal o outro ou parecido. Ele explica-lhe que era o mesmo mas não morrera na temporada anterior. Ela decora, e ele adormece de seguida.
No fim do episódio, alinhados os testemunhos entre as sestas de dez minutos, concordam que algo se passou de grave. Ela viu-o morrer, ele viu-o ser embrulhado no tapete, ela ouviu a queda na água, e a ele pareceu-lhe que o cadáver foi dar à costa. A possibilidade de encontrarem o corpo, concluem ambos, talvez seja o mistério que pede o próximo episódio.
E neste binge watching a quatro olhos, e de mãos dadas, lá vão eles troçando de Romeu e Julieta, os quais - que se saiba - nunca passaram sessenta anos juntos, nem consta que tivessem televisão.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia